em Evangelho do dia

Março de 2015

01.03.2015 – Mc 9, 2-10

2Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, Tiago e João e levou-os só a eles à parte a um monte alto e transfigurou-Se diante deles. 3Os vestidos tornaram-se resplan­decentes e alvíssimos, tanto que nenhuma lavadeira sobre a Terra os poderia assim branquear. 4E apareceu-lhes Elias com Moisés, que estavam a conversar com Jesus. 5Tomando Pedro a palavra, disse a Jesus: Rabi, bom é estarmos aqui. Façamos três guaridas, uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias; 6pois não sabia o que havia de dizer, visto estarem tomados de medo. 7Formou-se então uma nuvem que os envolveu, e da nuvem saiu uma voz: Este é o Meu Filho amado. Ouvi-O. 8E, de repente, olhando à volta de si, não viram a mais ninguém, senão só a Jesus com eles.

9Ao descerem do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, senão depois de o Filho do homem ter ressuscitado dos mortos. 10Eles guardaram o facto para si, mas perguntavam-se que seria aquilo de: «ressuscitar dos mortos».

Comentário

2-10. Contemplamos admirados esta manifestação da glória do Filho de Deus a três dos Seus discípulos. Desde a Encarnação, a Divindade de Nosso Senhor estava habitual­mente oculta por detrás da Humanidade. Mas Cristo quis manifestar precisamente a estes três discípulos predilectos, que iam ser colunas da Igreja, o esplendor da Sua glória divina com o fim de que se animassem a seguir o caminho difícil e áspero que lhes restava para percorrer, fixando o olhar na meta gozosa que os esperava no fim. Por esta razão, como comenta São Tomás (cfr Suma Teológica, III, q. 45, &. 1), foi conveniente que Cristo tenha manifestado a clareza da sua glória. As circunstâncias da Transfiguração imediata­mente depois do primeiro anúncio da Sua Paixão, e das palavras proféticas de que os Seus seguidores também teriam de tomar a Sua Cruz, fazem-nos compreender que «precisamos de passar por meio de muitas tribulações para entrar no Reino de Deus» (Act 14,22).

Em que consistiu a Transfiguração do Senhor? Para poder compreender de algum modo este facto miraculoso da vida de Cristo deve ter-se em conta que o Senhor, para nos redimir com a Sua Paixão e Morte, renunciou volunta­riamente à glória divina e encarnou com carne passível, não gloriosa, fazendo-se semelhante em tudo a nós menos no pecado (cfr Heb 4,15). Neste momento da Transfiguração, Jesus Cristo quer que a glória que Lhe correspondia por ser Deus, e que a Sua alma tinha desde o momento da Encarnação, apareça miraculosamente no Seu corpo. «Aprendamos desta atitude de Jesus: durante a Sua vida na Terra, não quis sequer a glória que Lhe pertencia, pois, tendo direito a ser tratado como Deus, assumiu a forma de servo, de escravo (cfr Phil II. 6)» (Cristo que. passa, n° 62). Tendo em conta Quem encarna (a dignidade da pessoa e a glória da Sua alma), era conveniente a glória do corpo de Jesus. Mas tendo em conta para que encarna (a finalidade da Encarnação), não era conveniente, de modo habitual, tal glória. Cristo mostra a Sua glória na Transfiguração para nos mover ao desejo da glória divina que nos será dada, e assim, com esta esperança, compreendamos «que os padecimentos do tempo presente não são comparáveis com a glória futura que se há-de manifestar em nós» (Rom 8,18).

2. Segundo o Deuteronómio (19,15), para atestar um facto eram necessárias duas ou três testemunhas. Talvez por isso Jesus Cristo quis que estivessem presentes três Após­tolos. Deve notar-se que estes três Apóstolos foram os predilectos, que O acompanharam também na ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37), e estiveram mais perto d’Ele nos momentos tremendos de Getsémani (Mc 14,33). Cfr a nota a Mt 17,1-13.

7. Deste modo explica São Tomás o significado da Transfiguração: «Assim como no baptismo de Jesus, onde foi declarado o mistério da primeira regeneração, se mostrou a acção de toda a Trindade, já que ali esteve o Filho Encarnado, apareceu o Espírito Santo em forma de pomba, e ali se escutou a voz do Pai; assim também na Transfiguração, que é como que o sacramento da segunda regeneração (a ressurreição), apareceu toda a Trindade: o Pai na voz, o Filho no homem, e o Espírito Santo na claridade da nuvem; porque assim como Deus Trino dá a inocência no Baptismo, da mesma maneira dará aos Seus eleitos o fulgor da glória e o alívio de todo o mal na Ressurreição…» (Suma Teológica, III, q.45, a.4 ad 2). Porque, na verdade, a Transfiguração foi um certo sinal ou antecipação não só da glorificação de Cristo, mas também da nossa. Pois, como diz São Paulo: «O próprio Espírito dá testemunho juntamente com o nosso espírito de que somos filhos de Deus. E se somos filhos, também herdeiros: herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo; desde que padeçamos com Ele, para sermos com Ele também glorificados» (Rom 8,16-17).

«O Amado»: Com esta expressão revela-se que Cristo é o Filho Unigênito do Pai, cumprindo as profecias do Antigo Testamento. Frei Luís de León comenta: «É Cristo O Amado, isto é, o que antes foi, e agora é e será para sempre a coisa mais amada de todas (…) porque nem uma criatura sozinha, nem as criaturas todas juntas, são de Deus tão amadas, e porque só Ele é o que tem verdadeiros adoradores de Si» (Os nomes de Cristo, livro 3, Amado).

10. A verdade da ressurreição dos mortos estava já revelada no Antigo Testamento (cfr Dan 12,2-3; 2 Mach 7,9; 12,43), e os judeus piedosos criam nela (cfr Ioh11,23-25). Não obstante, não eram capazes de compreender a verdade profunda da Morte e Ressurreição do Senhor, porque apenas consideravam o aspecto glorioso e triunfador do Messias, apesar de que também estavam profetizados os Seus sofrimentos e a Sua morte (cfr Is 53). Daí as disquisições dos Apóstolos que não se atrevem a perguntar directamente ao Senhor pela Sua Ressurreição.

02.03.2015 – Lc 6, 36-38

36Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. 37Não julgueis, e não sereis julgados. Não condeneis, e não sereis condenados. 38Absolvei, e sereis absolvidos. Dai, e dar-se-vos-á. Deitar-vos-ão no regaço uma boa medida, calcada, agitada, a transbordar, pois com a medida que empregardes vos será medido.

Comentário

36. O modelo de misericórdia que Cristo nos propõe é o próprio Deus. D’Ele diz São Paulo: «Bendito seja Deus Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação, o qual nos consola em todas as nossas tribulações» (2 Cor 1,3-4). «A primeira excelência que tem esta virtude — explica Frei Luís de Granada — é tornar os homens semelhantes a Deus, e semelhantes na coisa mais gloriosa que há n’Ele, que é na misericórdia (Lc 6,36).

Porque é certo que a maior perfeição que pode ter uma criatura é ser semelhante ao seu Criador: e quanto mais tiver desta semelhança, tanto mais perfeita será. E é certo também que uma das coisas que mais propriamente convém a Deus é a misericórdia, como o significa a Igreja naquela oração que diz: Senhor Deus, de quem é próprio ter misericórdia e perdoar. E diz ser isto próprio de Deus, porque assim como à criatura, enquanto criatura, pertence ser pobre e necessitada (e por isto a ela pertence receber e não dar), assim pelo contrário, como Deus é infinitamente rico e poderoso, só a Ele por excelência pertence dar e não receber, e por isto d ‘Ele é próprio ter misericórdia e perdoar» (Livro da oração e meditação, terceira parte, tratado terceiro).

O comportamento do cristão há-de seguir esta norma: compadecer-se das misérias alheias como se fossem próprias e procurar remediá-las. Neste mesmo sentido a nossa Santa Mãe a Igreja concretizou-nos uma série de obras de misericórdia tanto corporais (visitar e cuidar os doentes, dar de comer ao faminto, dar de beber ao sequioso…), como espirituais (ensinar aquele que não sabe, corrigir o que erra, perdoar as injúrias…) (cfr Catecismo Maior, nos 944-945). Também perante quem está no erro temos de ter com­preensão: «Este amor e benevolência de modo algum nos devem tornar indiferentes perante a verdade e o bem. Pelo contrário, é o próprio amor que incita os discípulos de Cristo a anunciar a todos a verdade salvadora. Mas deve distin­guir-se entre o erro, sempre de rejeitar, e aquele que erra, o qual conserva sempre a dignidade própria da pessoa, mesmo quando atingido por ideias religiosas falsas ou menos exactas. Só Deus é juiz e penetra os corações; por esse motivo, proibe-nos Ele de julgar da culpabilidade interna de qualquer pessoa» (Gaudium et spes, n. 28).

38. Lemos na Sagrada Escritura a generosidade da viúva de Sarepta, à qual Deus pediu que alimentasse o profeta Elias com o pouco que lhe restava; depois premiou a sua generosidade multiplicando-lhe a farinha e o azeite que tinha (1Reg 17,9 ss.). De maneira semelhante aquele menino que forneceu os cinco pães e os dois peixes, para que o Senhor os multiplicasse e alimentasse uma grande multidão (cfr Ioh 6,9), é um exemplo vivo do que o Senhor faz quando . entregamos o que temos, ainda que seja pouco.

Deus não Se deixa vencer em generosidade: «Vamos! Diz-Lhe com generosidade e como um menino: Que me irás dar quando me exiges ‘isso’?» (Caminho, n° 153). «Por muito que demos a Deus nesta vida, mais nos dará o Senhor como prêmio na vida eterna. Mas a pessoa que tem no seu coração um tesouro de maldade faz exactamente o contrário: odeia os seus amigos, fala mal de quem o ama, e todas as outras coisas condenadas pelo Senhor» (In Lucae Evangelium expositio, II, 6).

03.03.2015 – Mt 23, 1-12

Então Jesus falou assim ao povo e aos Seus discípulos: 2Na cadeira de Moisés, sentaram-se os Escribas e Fariseus. 3Fazei, portanto, e guardai tudo quanto vos disserem, mas não imiteis as suas obras, porque dizem e não fazem. 4Atam cargas pesadas e incomportaveis e põem-nas às costas da gente, mas eles nem com o dedo as querem mover. 5Fazem todas as suas obras para serem vistos dos homens. Por isso alargam as filactérias e alongam as franjas. 6Cobiçam os primeiros lugares nos banquetes, as pri­meiras cadeiras nas sinagogas 7e as sauda­ções nas praças, e que os homens lhes chamem: «rabi». 8Vós, porém, não queirais que vos chamem « rabi», pois um só é o vosso Mestre, e todos vós sois irmãos. 9E não chameis a ninguém vosso «pai» sobre a terra, pois um só é o vosso Pai, o do Céu. 10Nem queirais que vos chamem «directores», porque um só é o vosso Director, Cristo. 11O maior entre vós seja vosso servidor, 12pois quem se exaltar a si mesmo, será humilhado, e quem a si mesmo se humilhar, será exaltado.

Comentário

1-39. Todo este capítulo é uma dura acusação contra os escribas e fariseus, ao mesmo tempo que mostra a dor e a compaixão de Jesus pelas gentes simples, mal conduzidas por aqueles, «mal tratadas e abatidas como ovelhas sem pastor» (Mt 9,36). No discurso podem distin­guir-se três partes: na primeira (vv. 1-12) denuncia os seus principais vícios e corrupções; na segunda (vv. 13-36) encara-se com eles e dirige-lhes os célebres «ais», que vêm a ser como o reverso das bem-aventuranças do capítulo quinto: impossível será entrar no Reino dos Céus — ou o seu contrário, escapar da condenação do fogo — a quem não mude radicalmente de atitude e de conduta; na terceira parte (vv. 37-39) está a queixa contra Jerusalém: Jesus sente intimamente dor pelos males que acarreta ao povo a cegueira orgulhosa e a dureza de coração dos escribas e fariseus.

2-3. Moisés entregou ao povo a Lei que tinha recebido de Deus. Os escribas, que pertenciam na sua maioria ao partido dos fariseus, tinham a seu cargo ensinar ao povo a Lei mosaica: por isso se dizia deles que estavam sentados na cátedra de Moisés. O Senhor reconhece a autoridade com que os escribas e fariseus ensinam, enquanto transmitem a Lei de Moisés; mas previne o povo e os Seus discípulos acerca deles, distinguindo entre a Lei que eles lêem e ensinam nas sinagogas, e as interpretações práticas que eles mostram com a sua vida. Anos mais tarde São Paulo — fariseu, filho de fariseu —, manifestará acerca dos seus antigos colegas um juízo idêntico ao de Jesus: «Tu, porém, que ensinas outros, como não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve roubar, roubas? Tu, que dizes que não se deve cometer adultério, cometê-lo? Tu, que abominas os ídolos, saqueias os templos? Tu, que te glorias na Lei, será que não desonras Deus ao transgredir a Lei? Pois, como diz a Escritura, por vossa culpa é blasfemado o nome de Deus entre os gentios» (Rom 2, 21-24).

5. As filactérias eram fitas ou bandas em que escreviam palavras da Sagrada Escritura. Os israelitas punham-nas sobre a fronte e atadas aos braços. Para se distinguirem dos outros e parecer mais religiosos e observantes os fariseus levavam-nas mais largas. As franjas eram orlas de cor jacinto, postas nos remates das suas capas. Os fariseus em sinal de ostentação levavam-nas mais longas.

8-10. Jesus Cristo vem ensinar a Verdade; mais ainda, Ele é a Verdade (Ioh 14, 6). Daí a singularidade e o caracter único da sua condição de Mestre. «Toda a vida de Cristo foi um ensino contínuo: o Seu silêncio, os Seus milagres, os Seus gestos, a Sua oração, o Seu amor ao homem, a Sua predilecção pelos pequenos e pelos pobres, a aceitação do sacrifício total na Cruz pela salvação do mundo, a Sua Ressurreição são a actuação da Sua palavra e o cumprimento da revelação. De sorte que para os cristãos o Crucifixo é uma das imagens mais sublimes e populares de Jesus que ensina.

«Estas considerações, que estão na linha das grandes tradições da Igreja, reafirmam em nós o fervor por Cristo, o Mestre que revela Deus aos homens e o homem a si mesmo; o Mestre que salva, santifica e guia, que está vivo, que fala, que exige, que comove, que orienta, julga, perdoa, caminha diariamente connosco na história; o Mestre que vem e virá na glória» (Catechesi tradendae, n. 9).

11. Perante a apetência de honras que mostravam os fariseus, o Senhor insiste em que toda a autoridade, e com mais razão se é religiosa, deve ser exercida como um serviço aos outros. E, como tal, não pode ser instrumentalizada para satisfazer a vaidade ou a avareza pessoais. O ensino de Cristo é absolutamente claro: «O maior entre vós seja vosso servidor».

12. O espírito de orgulho e de ambição é incompatível com a condição de discípulo de Cristo. Com estas palavras o Senhor insiste na exigência da verdadeira humildade, como condição imprescindível para O seguir. Os verbos em voz passiva «será humilhado» e «será exaltado» têm como sujeito agente a Deus: Ele mesmo humilhará os soberbos e exaltará os humildes. Neste sentido a Epístola de São Tiago ensina que «Deus resiste aos soberbos e dá a Sua graça aos humildes» (lac 4,6). E no cântico do Magnificat, a Virgem Santíssima exclama que o Senhor «derrubou os poderosos do seu trono e exaltou os humildes» (Lc 1,52).

04.03.2015 – Mt 20, 17-28

17Ao subir para Jerusalém, tomou Jesus os doze discípulos à parte e disse-lhes no caminho: 18Olhai, subimos a Jerusalém, e o Filho do homem será entregue aos Príncipes dos sacerdotes e Escribas, e eles condená-Lo-ão à morte. 19E hão-de entregá-Lo aos gentios, para O escarnecerem e flagelarem e crucificarem; mas ao terceiro dia ressus­citará.

20Aproximou-se então d’Ele a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos, e prostrou-se por terra para Lhe pedir alguma coisa. 21Disse-lhe Ele: Que queres? E ela: Ordena que estes meus dois filhos se sentem um à Tua direita, outro à Tua esquerda no Teu Reino. 22Respondeu Jesus e disse: Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu hei-de beber? Responderam-Lhe: Podemos. 21Diz-lhes Ele: O Meu cálice bebê-lo-eis; agora o sentar-se à Minha direita ou à Minha esquerda, não Me toca a Mim concedê-lo, mas é para quem Meu Pai o tem preparado.

24Ao ouvirem isto, os dez indignaram-se contra os dois irmãos. 25Jesus, porém, chamou-os e disse: Sabeis que os soberanos das nações as tratam como senhores, e os grandes lhes fazem sentir o seu poder. 26Entre vós não é assim. Pelo contrário, o que entre vós quiser ser grande, faça-se vosso servo. 27E quem quiser entre vós ser o primeiro, faça-se vosso escravo. 28Do mesmo modo que o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida em redenção por muitos.

Comentário

18-19. O Senhor volta a profetizar aos Apóstolos a Sua morte e ressurreição. A perspectiva de julgar o mundo (cfr Mt 19, 28) podia deslumbrá-los até pensarem num reino mes­siânico temporal, num caminho fácil, em que estivesse ausente a ignomínia da Cruz.

Cristo, além disso, prepara o ânimo dos Apóstolos para que quando chegue esta prova recordem que Ele a tinha profetizado, e esta recordação os ajude a superar o escândalo que padeceriam, O anúncio da Paixão é descrito com pormenor.

«Tudo o que as diversas manifestações de piedade nos trazem à memória nestes dias — diz Monsenhor Escrivá de Balaguer referindo-se à Semana Santa — se encaminha decerto para a Ressurreição, que é o fundamento da nossa fé, como escreve S. Paulo (cfr 1Cor 15,14). Mas não percorramos este caminho demasiado depressa; não deixemos cair no esquecimento alguma coisa muito simples, que por vezes parece escapar-nos: não poderemos participar da Ressur­reição do Senhor se não nos unirmos à Sua Paixão e à Sua Morte (cfr Rom 8,17). Para acompanhar Cristo na Sua glória no final da Semana Santa, é necessário que penetremos antes no Seu holocausto e que nos sintamos uma só coisa com Ele, morto no Calvário» (Cristo que passa, n.°95).

20. Os filhos de Zebedeu são Tiago Maior e João. A sua mãe, Salomé, pensando na instauração iminente do reino temporal do Messias, solicita para os filhos os dois lugares mais influentes. Cristo repreende-os porque desconhecem a verdadeira natureza do Reino dos Céus, que é espiritual, e porque ignoram a verdadeira natureza do governo na Igreja que ia fundar, que é serviço e martírio. «Se pensas que, ao trabalhar por Cristo, os cargos são algo mais do que cargas, quantas amarguras te esperam!» (Caminho, n° 950).

22. «Beber o cálice» significa sofrer perseguições e martírio pelo seguimento de Cristo. «Podemos»: Os filhos de Zebedeu responderam audazmente que sim; esta generosa expressão evoca aquela outra que escreveria anos mais tarde São Paulo: «Tudo posso n’Aquele que me conforta» (Phil 4,13).

23. «O Meu cálice bebê-lo-eis»: Tiago Maior morrerá mártir em Jerusalém pelo ano 44 (cfr Act 12,2); e João, depois de ter sofrido cárcere e açoites em Jerusalém (cfr Act 4, 3; 5, 40-41), padecerá longo desterro na ilha de Patmos (cfr Apc 1, 9).

Destas palavras do Senhor deduz-se que o acesso aos lugares de governo na Igreja não deve ser fruto da ambição e das intrigas humanas, mas consequência da vocação divina. Cristo, que tinha os olhos postos em cumprir a Vontade de Seu Pai Celeste, não ia distribuir os cargos levado por considerações humanas, mas segundo os desígnios do Pai.

26. O Concilio Vaticano II insiste de uma maneira notável neste aspecto de serviço que a Igreja oferece ao mundo, e que os cristãos hão-de apresentar como testemunho da sua identidade cristã: «Este sagrado Concilio, procla­mando a sublime vocação do homem, e afirmando que nele está depositado um germe divino, oferece ao gênero humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de instaurar a frater­nidade universal que a esta vocação corresponde. Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente este objectivo: continuar, sob a direcção do Espírito Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido» (Gaudium et spes, n. 3; cfr Lumen gentium, n. 32; Ad gentes, n. 12; Unitatis redintegratio, n. 7).

27-28. Jesus Cristo apresenta-Se a Si mesmo como exemplo que deve ser imitado por aqueles que exercem a autoridade na Igreja. Ele, que é Deus e Juiz que há-de vir a julgar o mundo (cfr Phil 2,5-11; Ioh 5,22-27; Act 10,42; Mt 28, 18), não Se impõe, mas serve-nos por amor até ao ponto de entregar a vida por nós (cfr Ioh15,1.3): esta é a Sua forma de ser o primeiro. Assim o entendeu São Pedro, que exorta os presbíteros a que apascentem o rebanho de Deus a eles confiado, não como dominadores sobre a herança, mas servindo de exemplo (cfr 1Pet 5, 1-3); e São Paulo, que não estando submetido a ninguém, se faz servo de todos para a todos ganhar (cfr 1Cor 9, 19 ss; 2 Cor 4, 5).

O «serviço» de Cristo à humanidade vai encaminhando para a salvação. Com efeito, a frase «dar a vida em redenção por muitos» não deve ser interpretada como uma restrição da vontade salvífica universal de Deus. «Muitos» aqui não se contrapõe a «todos» mas a «um»: Um é o que salva e a todos é oferecida a salvação.

05.03.2015 – Lc 16, 9-31

19Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e todos os dias se dava esplêndidas festas. 20Jazia ao seu portão, Lázaro coberto de chagas, um pobre chamado Lá­zaro, 21que bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico. E até os cães lhe vinham lamber as chagas. 22Ora o pobre morreu e foi levado pelos Anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. 23E, no outro mundo, achando-se em tormentos, ergueu os olhos e viu de longe a Abraão, e Lázaro em seu seio. 24Então ergueu a voz e disse: «Pai Abraão, tem dó de mim e envia Lázaro para que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque sou atormentado nestas chamas». 25«Filho — respondeu Abraão — lembra-te que recebeste os teus benefícios em vida, e Lázaro de igual modo os infortúnios. E agora, ele é aqui consolado, enquanto tu és ator­mentado. 26Além de tudo isso, entre nós e vós cava-se um grande abismo, de modo que não podem os que quiserem, passar daqui para junto de vós, nem atravessar daí para junto de nós». 27Ele retorquiu: «Peço-te então, ó pai, que o mandes à minha casa paterna, pois tenho cinco irmãos; 28que os previna, para não virem, eles também, para este lugar de tormento». 29Disse-lhe Abraão: «Têm Moisés é os Profetas; que os oiçam!». 30Ele, porém, replicou: «Não, pai Abraão, mas, se alguém do seio dos mortos for ter com eles, hão-de arrepender-se». 3lEste respondeu-lhe: «Uma vez que não ouvem Moisés e os Pro­fetas, tão-pouco se hão-de convencer, se res­suscitar alguém dentre os mortos».

Comentário

19-31. A parábola dissipa dois erros: o dos que negavam a sobrevivência da alma depois da morte e, portanto, a retribuição ultraterrena, e o dos que interpretavam a pros­peridade material nesta vida como prêmio da rectidão moral, e a adversidade, pelo contrário, como castigo. Perante este duplo erro a parábola deixa claros os seguintes ensinamentos: que imediatamente depois da morte a alma é julgada por Deus de todos os seus actos — juízo particular —, recebendo o prêmio ou o castigo merecidos; que a Revelação divina é, de per si, suficiente para que os homens creiam no mais além.

Noutra ordem de ideias, a parábola ensina também a dignidade de toda a pessoa humana pelo tacto de o ser, independentemente da sua posição social, econômica, cul­tural, religiosa, etc. E o respeito por essa dignidade leva consigo a ajuda ao desprotegido de bens materiais ou espiri­tuais: «Vindo a conclusões práticas e mais urgentes, o Con­cilio recomenda a reverência para com o homem, de ma­neira que cada um deve considerar o próximo, sem excepção, como um outro eu, tendo em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários para a levar dignamente, não imitando aquele homem rico que não fez caso algum do pobre Lázaro» (Gaudium et spes, n. 27).

Outra consequência prática do respeito pelo homem é a correcta distribuição de bens materiais, buscando ao mesmo tempo os recursos suficientes para defender a vida do homem, inclusivamente a do que ainda não nasceu, como exortava Paulo VI diante da Assembleia Geral das Nações Unidas: «Na vossa assembleia, inclusive no que diz respeito ao problema da natalidade, é onde o respeito pela vida deve encontrar a sua mais alta profissão e a sua mais razoável defesa. A vossa tarefa é actuar de tal sorte que o pão seja suficientemente abundante na mesa da humanidade e não favorecer um controle artificial dos nascimentos, que seria irracional, tendo em vista diminuir o número de comensais no banquete da vida». (Discurso Nações Unidas, n° 6).

21. A alusão aos cães não parece um pormenor de alívio para o pobre Lázaro, mas antes uma intensificação das suas dores, em contraste com os prazeres do rico avarento, porque os cães, entre os judeus, eram animais impuros e, portanto, ordinariamente não se domesticavam.

22-26. Os bens terrenos, como também os sofrimentos, são efêmeros: acabam-se com a morte, com a qual também termina o tempo de provação, a nossa possibilidade de pecar ou de merecer; e começa imediatamente o gozo do prêmio ou o sofrimento do castigo, ganhos durante a prova da vida. Segundo definiu o Magistério da Igreja, as almas de todos os que morrem em graça de Deus, imediatamente depois da sua morte, ou da purificação para os que dela precisarem, estarão no Céu: «Cremos na vida eterna. Cremos que as almas de todos aqueles que morrem na graça de Cristo — tanto as que ainda devem ser purificadas pelo fogo do Purgatório como as que imediatamente depois de se separarem do corpo, como o bom ladrão, são recebidas por Jesus no Paraíso — constituem o Povo de Deus depois da morte, a qual será destruída totalmente no dia da Ressurreição em que estas almas se unirão com os seus corpos» (Credo do Povo de Deus, n° 28).

A expressão « seio de Abraão» indica o lugar ou estado em «que residiam as almas dos santos antes da vinda de Cristo Senhor Nosso, onde, sem sentir dor alguma, sustentados com a esperança ditosa da redenção, desfrutavam de pací­fica morada. A estas almas piedosas que estavam à espera do Salvador no seio de Abraão, libertou Cristo Nosso Senhor ao baixar aos infernos» (Catecismo Romano, l, 6,3).

22. «Morreram os dois, o rico e o mendigo, e foram levados diante de Abraão e fez-se o juízo do seu comporta mento. E a Escritura diz-nos que Lázaro recebeu consolação e, pelo contrário, ao rico foram dados tormentos. Será que o rico foi condenado porque tinha riquezas, porque abundava em bens da terra, porque ‘vestia de púrpura e linho e celebrava cada dia esplêndidos banquetes’? Não, quero dizer que não foi por esta razão. O rico foi condenado porque não ajudou o outro homem. Porque nem sequer se deu conta de Lázaro, da pessoa que se sentava ao seu portal e ansiava pelas migalhas da sua mesa. Em nenhum lugar condena Cristo a mera posse de bens terrenos enquanto tal. Pelo contrário, pronuncia palavras muito duras contra os que utilizam os bens egoisticamente, sem se fixarem nas necessidades dos outros (…).

«A parábola do rico avarento e do pobre Lázaro deve estar sempre presente na nossa memória; deve formar-nos a consciência. Cristo pede abertura para os irmãos e irmãs necessitados; abertura de parte do rico, do opulento, do que está abastado economicamente; abertura para o pobre, o subdesenvolvido, o desprotegido. Cristo pede uma abertura que é mais que atenção benigna, ou mostras de atenção ou meio-esforço, que deixam o pobre tão desprotegido como antes ou inclusivamente mais (…).

«Não podemos permanecer ociosos desfrutando as nossas riquezas e liberdade se nalgum lugar o Lázaro do século XX está à nossa porta. À luz da parábola de Cristo, as riquezas e a liberdade criam responsabilidades especiais. As riquezas e a liberdade criam uma obrigação especial. E, por isso, em nome da solidariedade que nos vincula a todos numa única humanidade, proclamo de novo a dignidade de toda a pessoa humana; o rico e Lázaro, os dois, são seres humanos, criados os dois à imagem e semelhança de Deus, redimidos os dois por Cristo por grande preço, pelo preço do ‘precioso Sangue de Cristo’. (1Pet 1,19)» (Homília Yankee Stadium).

24-31. O diálogo entre o rico avarento e Abraão é uma encenação didática para gravar nos ouvintes os ensina­mentos da parábola. Assim, em sentido estrito, no inferno não pode haver compaixão alguma em favor do próximo, já que ali só reina a lei do ódio contra tudo e contra todos. «Quando Abraão disse ao rico: ‘Entre vós e nós existe um abismo (…)’, manifestou que depois da morte e ressurreição não haverá lugar para penitência alguma. Nem os ímpios se arrependerão e entrarão no Reino, nem os justos pecarão e baixarão para o inferno. Este é um abismo intransponível» (A frates, Demonstratio, 20; De Sustentatione egenorum, 12). Por isso se compreendem as seguintes palavras de São João Crisóstomo: «Rogo-vos e peco-vos e, abraçado aos vossos pés, suplico-vos que, enquanto gozemos desta pequena res­piração da vida, nos arrependamos, nos convertamos, nos tornemos melhores, para que não nos lamentemos inutil­mente como aquele rico quando morrermos e o pranto não nos traga remédio algum. Porque ainda que tenhas um pai ou um filho ou um amigo ou qualquer outro que tenha influência diante de Deus, todavia, ninguém te livrará, sendo como são os teus próprios factos que te condenam» (Hom. sobre 1 Cor).

06.03.2015 – Mt 21, 33-43.45-46

33Ouvi outra parábola: Havia um proprie­tário que plantou uma vinha, e rodeou-a com uma cerca, e cavou nela um lagar, e levantou uma torre; depois arrendou-a a uns lavradores e partiu para longe. 34Quando se homicidas aproximou a época das colheitas, mandou os seus servos aos lavradores para receber os frutos. 35Os lavradores, porém, pegaram nos servos e espancaram a um, mataram a outro e a outro apedrejaram. 36Tornou ele a mandar outros servos em maior número que os primeiros. E eles trataram-nos do mesmo modo. 37Por fim mandou-lhes o seu próprio filho, dizendo: «Hão-de respeitar o meu filho». 38Mas os lavradores, ao verem o filho, disseram entre si: «Este é o herdeiro, vamos matá-lo e ficaremos com a sua herança!»39E sem mais, pegaram nele, lançaram-no fora da vinha e mataram-no. 40Ora, quando vier o dono da vinha, que fará àqueles lavradores?

41Responderam-Lhe: Fará morrer de má morte os malvados e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe paguem os frutos a seu tempo.42Disse-lhes Jesus: Nunca lestes nas Escrituras:

«A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser pedra angular?

Isto é obra do Senhor e é maravilha a nossos olhos?»

43Por isso vos digo que vos será tirado o Reino de Deus e dado a um povo que produza os seus frutos.

45Ouvindo as Suas parábolas, os Príncipes dos sacerdotes e os Fariseus compreenderam que falava deles 46e queriam prendê-Lo, mas tiveram medo do povo, que O tinha por profeta.

Comentário

33-46. Esta parábola, tão importante, completa a anterior. A parábola dos dois filhos limitava-se a mostrar o facto da indocilidade de Israel; a dos vinhateiros homicidas projecta a sua luz sobre o castigo consequente.

O Senhor compara Israel com uma vinha escolhida, provida segundo o uso oriental da sua cerca, do seu lagar, com a sua torre de vigilância algo elevada, onde se coloca o guardião encarregado de proteger a vinha contra os ladrões e os chacais. Deus não regateou nada para cultivar e embelezar a sua vinha. Os vinhateiros, na parábola, são colonos; o dono é Deus, e a vinha é Israel (Is 5,3-5; ler 2,21; Ioel 1, 7).

Os vinhateiros a quem Deus tinha entregado o cuidado do Seu povo representam os sacerdotes, escribas e anciãos. A ausência do dono dá a entender que Deus confiou realmente Israel aos seus chefes; e daqui nasce a sua responsabilidade e contas exigidas pelo dono da vinha.

O dono envia os seus servos de vez em quando para receber os seus frutos. Esta foi a missão dos profetas. O segundo envio dos servos para reclamar o que deviam ao seu dono, e que corre a mesma sorte que o primeiro, é uma alusão aos maus tratos infligidos aos profetas de Deus pelos reis e sacerdotes de Israel (Mt 23, 37; Act 7, 42; Heb 11, 36-38). Finalmente enviou-lhes o Seu Filho, pensando que, sem dúvida, O respeitariam. Aqui é assinalada a diferença entre Jesus e os profetas, que eram servos, mas não «o Filho»: a parábola refere-se à filiação transcendente e única que expressa a divindade de Jesus Cristo.

A intenção perversa dos vinhateiros de assassinar o filho herdeiro, para ficarem eles com a herança, é o desatino com que os chefes da sinagoga esperam ficar como donos indiscutíveis de Israel ao matarem Cristo (Mt 12, 14: 26, 4). Não pensam no castigo: a ambição cega-os. Então «lançaram-no fora da vinha e mataram-no»: referência à crucifixão que teve lugar fora dos muros de Jerusalém.

Jesus Cristo profetiza o castigo que Deus imporá aos malvados: dar-lhes-á morte, e arrendará a vinha a outros. Estamos diante de uma profecia da máxima importância: São Pedro repetirá mais tarde diante do sinédrio: «a pedra que os construtores rejeitaram, esta veio a ser pedra angular» (Act 4, 11; 1Pet 2,4). A pedra é Jesus de Nazaré, mas os arquitectos de Israel, os que constroem e governam o povo, não quiseram usá-la na construção. Por isso, por causa da sua infidelidade, o Reino de Deus será transferido para outro povo, os gentios, que saberão dar a Deus os frutos que Ele espera da sua vinha (cfr Mt 3,8-10; Gal 6, 16).

É necessário assentar sobre esta pedra para estar solidamente edificado. E infeliz o que tropece nela (Mt 12,30; Lc2,34). Aqueles judeus primeiro e depois todos os inimigos de Cristo e da Igreja comprová-lo-ão com dura experiência (Is 8,14-15).

Os cristãos de todos os tempos deverão considerar esta parábola como uma exortação a construir com fidelidade sobre Cristo, para não reincidir no pecado daquela geração judaica. Ao mesmo tempo deve encher-nos de esperança e de segurança: ainda que o edifício, que é a Igreja, pareça fender-se em algum momento, a sua solidez está assegurada, porque tem Cristo como pedra angular.

07.03.2015 – Lc 15, 1-3.11-32

Ora os publicanos e os pecadores aproximavam-se todos de Jesus para O ouvirem. 2E os Fariseus e os Escribas murmuravam entre si, dizendo: Este homem acolhe os pecadores e come com eles. 3Pro­pôs-lhes então a seguinte parábola: 11Certo homem tinha dois filhos. 12E o mais novo dentre eles disse ao pai: «Pai, dá-me a parte que me cabe da fortuna». E ele repartiu-lhes os bens. 13Alguns dias depois, o filho mais novo, reunindo tudo, ausentou-se para uma região longín­qua e por lá esbanjou os seus bens, vivendo dissipadamente. 14Depois de haver gastado tudo, houve uma grande fome por aquela região, e ele começou a passar privações. 15Foi então ligar-se a um dos habitantes daquela região, o qual o mandou para os seus campos guardar porcos. 16Bem desejava ele encher o ventre com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. 17Então caiu em si e disse: «Quantos jornaleiros de meu pai têm pão com fartura, e eu morro aqui à fome! 18Vou ter com meu pai e digo-lhe: Pai, pequei contra o Céu e para contigo. 19Já não sou digno de cha­mar-me teu filho. Trata-me como um dos teus jornaleiros». 20Partiu, pois, e foi ter com o pai.

Estando ele ainda longe, viu-o o pai, e encheu-se de compaixão e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, beijando-o. 21Disse-lhe o filho: «Pai, pequei contra o Céu e para contigo. Já não sou digno de chamar-me teu filho». 22Disse o pai aos seus criados: «Trazei depressa o fato melhor e vesti-lho; ponde-lhe um anel na mão, e calçado nos pés. “Trazei o vitelo gordo, matai-o; e comamos em festa, 24porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e encontrou-se». E começaram com a festa.

25Ora o filho mais velho estava no campo. Quando, à volta, se aproximou da casa, ouviu música e danças. 26Chamando um dos moços, pediu-lhe informações sobre o que era aquilo. 27«É que chegou teu irmão — lhe disse este — e teu pai matou o vitelo gordo, porque de regresso o encontrou com saúde.» 28Ele ficou irritado e não queria entrar. O pai veio cá fora instar com ele. 29Mas ele, em resposta, disse ao pai: «Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e tu nunca me deste um cabrito, para eu fazer uma festa com os meus amigos! 30Mas, quando chegou esse teu filho, que te consumiu a fortuna com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo». 31O pai respondeu-lhe: «Filho, tu sempre estás comigo e tudo o que é meu é teu. 32Mas nós tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e encontrou-se».

 

Comentário

1-32. Com as Suas obras Jesus manifesta a misericórdia divina: aproxima-Se dos pecadores para os converter. Os escribas e os fariseus, que desprezam os pecadores, não compreendem esse comportamento de Jesus, e murmuram d’Ele; será ocasião para que Nosso Senhor pronuncie as parábolas da misericórdia. «O Evangelista que trata de modo particular estes temas do ensino de Cristo é São Lucas, cujo Evangelho mereceu ser chamado ‘o Evan­gelho da misericórdia’» (Dives in misericórdia, n. 3).

Neste capítulo São Lucas recolhe três destas parábolas, em que de modo gráfico Jesus descreve a infinita e paterna misericórdia de Deus, e a Sua alegria pela conversão do pecador.

O Evangelho ensina que ninguém está excluído do per dão, e que os pecadores podem chegar a ser filhos que­ridos de Deus mediante o arrependimento e a conversão. E é tal o desejo divino de que os pecadores se convertam que as três parábolas terminam repetindo, a modo de estribilho, a alegria grande no Céu por cada pecador arrependido.

1-2. Não é esta a primeira vez que publicanos e peca­dores se aproximam de Jesus (cfr Mt 9,10). A pregação do Senhor atraía pela sua simplicidade e pelas suas exigências de entrega e de amor. Os fariseus tinham-Lhe inveja porque a gente ia atrás d’Ele (cfr Mt 26,3-5; Ioh 11,47). Essa atitude farisaica pode repetir-se entre os cristãos: uma dureza de juízo tal que não aceite que um pecador, por maiores que tenham sido os seus pecados, possa converter-se e ser santo; uma cegueira de mente tal que impeça reconhecer o bem que fazem os outros e alegrar-se disso. Nosso Senhor já vai ao encontro desta atitude errada quando responde aos Seus discípulos que se queixam de que outros expulsem demônios em Seu nome: «Não lho proibais, pois não há ninguém que faça um milagre em Meu nome e possa a seguir falar mal de Mim» (Mc 9,39). Igualmente São Paulo alegrava-se de que outros anunciassem Cristo, e inclusivamente passava por alto que o fizessem por interesse, desde que Cristo fosse pregado (cfr Phil 1,17-18).

11. Estamos perante uma das parábolas mais belas de Jesus, em que nos é ensinado uma vez mais que Deus é um Pai bom e compreensivo (cfr Mt 6,8; Rom 8,15; 2 Cor 1,3). O filho que pede a parte da sua herança é figura do homem que se afasta de Deus por causa do pecado. Nesta parábola «a essência da misericórdia divina — embora no texto origi­nal não seja usada a palavra ‘misericórdia’ — aparece de modo particularmente límpido» (Dives in misericórdia, n. 5).

12-13. «Este filho, que recebe do pai a parte da herança que lhe toca e deixa a casa paterna para esbanjar essa herança numa terra longínqua ‘vivendo dissolutamente’, em certo sentido é o homem de todos os tempos, a começar por aquele que foi o primeiro a perder a herança da graça e da justiça original. Neste ponto a analogia é muito vasta. Indirectamente a parábola estende-se a todas as rupturas da aliança de amor: a toda a perda da graça, e todo o pecado» (Dives in misericórdia, n. 5).

14-15. Neste momento da parábola vemos as tristes consequências do pecado. Com essa fome fala-se-nos da ansiedade e do vazio que sente o coração do homem quando está longe de Deus. Com a servidão do filho pródigo é-nos descrita a escravidão a que fica submetido quem pecou (cfr Rom 1, 25;6,6; Gal 5,1). Assim, pelo pecado o homem perde a liberdade dos filhos de Deus (cfr Rom 8,21; Gal 4,31; 5,13) e submete-se ao poder de Satanás.

17-21. A recordação da casa paterna e a segurança no amor do pai fazem que o filho pródigo reflicta e decida pôr-se a caminho. «De certo modo, a vida humana é um constante regresso à casa do Pai, um regresso mediante a contrição, a conversão do coração que significa o desejo de mudar, a decisão firme de melhorar a nossa vida e que, portanto, se manifesta em obras de sacrifício e de doação; regresso a casa do Pai, por meio do sacramento do perdão, em que, ao confessar os nossos pecados, nos revestimos de Cristo e nos tornamos assim seus irmãos, membros da família de Deus» (Cristo que passa, n° 64).

20-24. Deus espera sempre o regresso do pecador e quer que se arrependa. Quando chega O filho pródigo as palavras do pai não são de repreensão mas de imensa compaixão, que o leva a abraçar o filho e a cobri-lo de beijos.

20. «Não há dúvida de que, naquela simples, mas pene­trante comparação, a figura do pai revela-nos Deus como Pai» (…). O pai do filho pródigo é pela sua paternidade, fiel ao amor que desde sempre tinha dedicado ao seu filho. Tal fidelidade manifesta-se na parábola não apenas na prontidão em rece­bê-lo em casa, quando ele voltou depois de ter esbanjado a herança, mas sobretudo na alegria e no clima de festa tão generoso para com o esbanjador que regressa. Esta atitude provoca até a inveja do irmão mais velho, que nunca se tinha afastado do pai, nem abandonado a casa paterna.

«A fidelidade a si próprio por parte do pai — traço caracte­rístico já conhecido pelo termo do Antigo Testamento ‘hesed’ — exprime-se de modo particularmente denso de afecto. Lemos, com efeito, que, ao ver o filho pródigo regressar a casa, o pai, ‘movido de compaixão, correu ao seu encontro, abraçou-o efusivamente e beijou-o’. Procede deste modo levado certamente por profundo afecto; e assim se explica também a sua generosidade para com o filho, generosidade que causará tanta indignação no irmão mais velho» (Dives in misericórdia, n. 6).

«Perante um Deus que corre para nós, não podemos calar-nos e dir-Lhe-emos com São Paulo: Abba, Pater! (Rom 8, 15). Pai! Meu Pai! Pois, sendo Ele o Criador do universo, não dá importância a títulos altissonantes, nem sente falta da justa confissão do seu poderio. Quer que Lhe chamemos Pai, que saboreemos essa palavra, enchendo a alma de alegria (…).

«Deus espera-nos como o pai da parábola, estendendo para nós os braços, embora não o mereçamos. Não importa o que lhe devemos. Como no caso do filho pródigo, o que é preciso é que lhe abramos o coração, que tenhamos sau­dades do lar paterno, que nos maravilhemos e nos alegremos perante o dom que Deus nos fez de nos podermos chamar e sermos realmente, apesar de tanta falta de correspondência da nossa parte, seus filhos» (Cristo que passa, n° 64).

25-30. A misericórdia de Deus é tão grande que escapa à compreensão do homem; e este é o caso do filho mais velho, que considera excessivo o amor do pai para com o filho mais novo; a sua inveja não o deixa compreender as manifestações de amor que o pai mostra ao recuperar o filho perdido, nem compartilhar a alegria da família. «É verdade que foi pecador. — Mas não faças dele esse juízo inabalável. — Abre o coração à piedade, e não te esqueças de que ainda pode vir a ser um Agostinho, enquanto tu não passas de um medíocre» (Caminho, n.° 675).

Por outro lado, devemos considerar que se Deus tem compaixão dos pecadores, quanto mais terá dos que se esforçam por permanecer fiéis. Bem o compreendia Santa Teresinha de Lisieux: «Que doce alegria a de pensar que o Senhor é justo, isto é, que conta com as nossas debilidades, que conhece perfeitamente a fragilidade da nossa natureza! Por quê, pois, temer? O bom Deus, infinitamente justo, que Se dignou perdoar com tanta misericórdia as culpas do filho pródigo, não será também justo comigo que estou sempre junto d’Ele?» (História de uma alma, cap. 8).

32. «A misericórdia apresentada por Cristo na parábola do filho pródigo tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado ‘agape’. Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda a miséria moral, sobre o pecado. Quando isto acontece, aquele que é objecto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e ‘revalorizado’. O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido ‘reencontrado’ e por ter ‘voltado à vida’. Esta alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser real­mente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio» (Dives in misericórdia, n. 6).

08.03.2015 – Jo 2, 13-25

13Estava próxima a Páscoa dos Judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. 14Encontrou no Templo os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas, e os cambistas abancados. 15Fez um chicote de cordas e a todos expulsou do Templo, incluindo as ovelhas e os bois; des­pejou os trocos dos banqueiros, derribando-lhes as mesas, 16e disse aos que vendiam as pombas: Tirai isto daqui; não façais da casa de Meu Pai casa de comércio, 17lembra­ram-se os discípulos de que estava escrito: Devorar-Me-á o zelo pela Tua casa. 18Tomaram então os Judeus a palavra e perguntaram-Lhe: Que sinal nos apresentas para assim procederes? 19Respondeu-lhes Jesus: Desfazei este Santuário e Eu em três dias o levantarei. 20Disseram então os Judeus: Há quarenta e seis anos que se tem estado a construir este Santuário, e Tu em três dias o hás-de levantar? 21Ele, porém, dizia isto a respeito do Santuário do Seu corpo. 22Por isso, quando ressuscitou dos mortos, recor­daram-se os discípulos de que Ele o tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra que Jesus pronunciara.

23Enquanto Ele estava em Jerusalém, pela festa da Páscoa, muitos acreditaram no Seu nome, ao verem os milagres que fazia. 24Mas Jesus, pessoalmente, não se fiava neles, por­que os conhecia a todos 25e não precisava de que Lhe dessem informações de homem algum. É que Ele bem sabia o que há no homem!

Comentário

13. «Páscoa dos Judeus»: Era a festa religiosa mais importante do povo do Antigo Testamento, prefiguração da Páscoa cristã (cfr a nota a Mt 26,2). A Páscoa judaica cele­brava-se no dia 14 do mês de Nisan e a seguir vinha a semana festiva dos Ázimos (pão sem fermento). Segundo a Lei de Moisés, em tais dias todo o israelita devia «apresentar-se diante do Senhor» (Ex 34,23; Dt 16,16). Isto explica o pie­doso costume da peregrinação ao Templo de Jerusalém para estas festas, a grande aglomeração de gente e a afluência de vendedores, que abasteciam as necessidades dos peregrinos, mas que davam lugar a sérios abusos.

«Jesus subiu a Jerusalém»: Com isso faz manifestação pública da Sua observância da Lei de Deus. Mas, segundo mostram os factos que acontecem a seguir, vê-se que Jesus Cristo acorre ao Templo como quem é: o Filho Unigênito, que deve velar pelo decoro e pela honra devidos à Casa de Seu Pai. «E desde então Jesus, o Ungido de Deus, começa sempre por reformar os abusos e purificar do pecado; tanto quando visita a Sua Igreja, como quando visita a alma cristã» (Orígenes, Homílias sobre São João, 1).

14-15. Todo o israelita tinha de oferecer como sacrifício na festa da Páscoa um boi ou uma ovelha, se era rico; ou duas rolas ou dois pombos, se era pobre (Lev 5,7). Além disso, devia pagar cada ano meio siclo, se tinha feito os 20 anos. O meio siclo, que equivalia ao jornal de um operário, era uma moeda especial, chamada também moeda do Templo (Ex 30,13); as outras moedas em uso (denários, dracmas, etc.), por levarem impressas a efígie de autoridades pagãs, eram consideradas impuras. Por ocasião da Páscoa, quando o concurso de gente era maior, o átrio exterior do Templo ou pátio dos gentios enchia-se de vendedores, cambistas, etc., com as consequências imagináveis: ruído, vozearia, mugidos, estéreo… Já os profetas tinham fustigado tal abuso (cfr Zach 14,21) introduzido com a autorização tácita das autoridades do Templo, que obtinham assim boas receitas. Cfr as notas a Mt 21,12-13 e a Mc 11,15-18.

16-17. «Devorar-me-á o zelo pela Tua casa»: Trata-se de uma citação do Salmo 69,10. Jesus acaba de fazer uma afirmação transcendente: «Não façais da casa de Meu Pai casa de comércio». Ao chamar a Deus Seu Pai e ao actuar com grande fortaleza, proclama-Se diante de todos o Messias Filho de Deus. O zelo de Jesus pela glória de Seu Pai não passou despercebido aos discípulos, que viram na Sua con­duta cumpridas as palavras do Salmo 69.

18-22. O Templo de Jerusalém, que tinha substituído o antigo Santuário que os israelitas transportavam no deserto, era o lugar escolhido por Deus durante o Antigo Testa­mento para manifestar de uma maneira especial a Sua presença no meio do povo. Mas essa realidade antiga era apenas uma figura ou antecipação imperfeita da realidade plena da presença de Deus entre os homens, que é o Verbo de Deus feito carne. Jesus, em que «habita toda a plenitude da divindade corporalmente» (Col 2,9), é a plena presença de Deus aqui na terra e, portanto, o verdadeiro Templo de Deus. Jesus identifica o Templo de Jerusalém com o Seu próprio Corpo, e deste modo refere-Se a uma das verdades mais profundas sobre Si mesmo: a Encarnação. Depois da Ascen­são do Senhor aos Céus essa presença real e especialíssima de Deus no meio dos homens continua no sacramento da Santíssima Eucaristia.

O comportamento e as expressões de Cristo quando ex­pulsava os vendedores do Templo manifestam claramente que Ele é o Messias anunciado pelos profetas. Por isto se aproximam alguns judeus e Lhe pedem um sinal do Seu poder (cfr Mt 16,1; Mc 8,11; Lc 11,29). As autoridades judai­cas tentaram transformar a resposta de Jesus (v. 20), que ficou obscura até ao momento da Sua Ressurreição, numa invectiva contra o Templo, digna da pena de morte (Mt 26,61; Mc 14,58; cfr ler 26,4 ss.); utilizaram-na depois com sarcasmo contra o Senhor agonizante na Cruz (Mt 27,40; Mc 15,29) e, mais tarde, bastou-lhes ouvi-la repetir a Santo Estevão para o acusarem perante o Sinédrio (Act 6,14).

Nas palavras pronunciadas por Jesus não há nada depre­ciativo, como pretenderiam depois as falsas testemunhas. O milagre que lhes oferece, a que chama «o sinal de Jonas» (cfr Mt 16,4) será a Sua própria Ressurreição ao terceiro dia. Para indicar a grandiosidade do milagre da Sua Ressur­reição, Jesus recorre a uma metáfora: é como se dissesse: Vedes este Templo? Pois bem, imaginai-o destruído. Não seria um grande milagre reconstruí-lo em três dias? Isto farei Eu como sinal. Porque vós destruireis o Meu Corpo, que é o Templo verdadeiro, e Eu o voltarei a levantar ao terceiro dia.

A declaração de que Jesus é o Templo de Deus ficou encoberta para todos. Judeus e discípulos pensaram que o Senhor falava de voltar a edificar o Templo que Herodes o Grande tinha começado a construir no ano 19-20 a.C. Os discípulos entenderam depois o verdadeiro sentido da ex­pressão.

23-25. Os milagres de Jesus levaram muitos judeus a reconhecer que n’Ele havia uns poderes divinos e extraor­dinários. Mas isto não é ainda a perfeita fé teologal. Jesus conhecia a limitação daquela fé. Além disso, a adesão dos judeus mostrava-se geralmente superficial, ávida de mani­festações extraordinárias. Por isso Jesus desconfia deles (cfr Ioh6,15.26). «Muitos agora são iguais. Têm o nome de fiéis, mas são volúveis e inconstantes», comenta o Crisóstomo (Hom. sobre S. João, 23,1).

O conhecimento que Jesus tem do interior do homem é uma prova mais da Sua divindade. Assim, por exemplo, Natanael e a samaritana reconheceram-No como o Messias, rendidos diante da evidência do poder sobrenatural que Jesus Cristo mostrava ao conhecer a sua intimidade (cfr Ioh1,49:4,29).

09.03.2015 – Lc 4, 24-30

24E continuou: Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua terra; 25mas, na realidade, vos digo Eu, muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou por três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a Terra, 26e a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta de Sidónia. 27E muitos leprosos havia em Israel, no tempo do Profeta Eliseu, mas nenhum deles foi limpo senão o sírio Naamã.

28Todos na sinagoga se encheram de furor, ao ouvirem estas coisas. 29Ergueram-se então, lançaram-No fora da cidade e levaram-No até a uma escarpa do outeiro em que estava construída a cidade, a fim de O precipitarem. 30Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o Seu caminho.

Comentário

22-29. Os habitantes de Nazaré escutam ao princípio com agrado as palavras cheias de sabedoria de Jesus. Mas a visão destes homens é muito superficial. Com um orgulho mesquinho sentem-se feridos pelo facto de Jesus, seu con­cidadão, não ter feito em Nazaré os prodígios que fez noutras cidades. Levados por uma confiança mal entendida, exigem-Lhe com insolência que faça ali milagres para agradar à sua vaidade, mas não para se converterem. Diante desta atitude Jesus não faz nenhum prodígio, seguindo o Seu modo habitual de proceder (veja-se, por exemplo, o encontro com Herodes em Lc 23,7-11); inclusivamente censura a sua posi­ção, explicando-lhes com dois exemplos tomados do AT (cfr 1Reg 17,9 e 2Reg 5,14) a necessidade de uma boa disposição a fim de que os milagres possam dar origem à fé. A atitude de Cristo fere-os no seu orgulho até ao ponto de O quererem matar. Todo o episódio é uma boa lição para entender de veras a Jesus: só pode ser entendido na humildade e na séria resolução de nos pormos nas Suas mãos.

30. Jesus não foge precipitadamente, mas vai-Se reti­rando por entre a turba agitada com uma majestade que os deixou paralisados. Como noutras ocasiões, os homens não podem nada contra Jesus: o decreto divino era que o Senhor morresse crucificado (cfr Ioh 18,32) quando chegasse a Sua hora.

10.03.2015 – Mt 18, 21-35

21Então aproximou-se Pedro e disse-Lhe: Perdão Senhor, se meu irmão pecar contra mim, quantas vezes lhe devo perdoar? Ate sete vezes? 22Disse-lhe Jesus: Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. 23Por isso, é semelhante o Reino dos Céus a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. 24 Logo ao começar, foi-lhe apresentado um que devia dez mil talentos. 25E como não tivesse com que pagar, mandou o senhor que o vendessem a ele e à mulher e aos filhos e a tudo quanto tinha e que assim se pagasse a dívida. 26Lançou-se o servo por terra e, prostrando-se diante dele, disse-lhe: «Senhor, tem paciência comigo e pagar-te-ei tudo». 27E o senhor, compadecido daquele servo, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. 28Ao sair, encontrou-se o servo com um dos seus companheiros que lhe devia cem dinheiros e, aferrando-o pelo pescoço afo­gava-o, dizendo: Paga o que deves. 29Lançou-se-lhe o companheiro aos pés e começou a suplicar-lhe: Tem paciência comigo e pagar-te-ei. 30Ele, porém, não quis, mas foi metê-lo na cadeia até que pagasse a dívida. 31Os outros servos, ao verem o que se passava, ficaram muito magoados e foram contar tudo ao senhor. 32Entào o senhor chamou-o e disse-lhe: Servo perverso, perdoei-te toda aquela dívida, porque mo pediste. 33Não devias tu compadecer-te do teu compa­nheiro, como eu me compadeci de ti? 34E, indignado, o senhor entregou-o aos algozes até que pagasse toda a dívida. 35Assim vos fará também o Meu Pai celeste, se não perdoardes, cada um a seu irmão, do íntimo dos vossos corações.

Comentário

21-35. A pergunta de Pedro e, sobretudo, a resposta de Jesus dão-nos a pauta do espírito de compreensão e miseri­córdia que deve presidir à actuação dos cristãos.

A cifra de setenta vezes sete na linguagem hebraica equivale ao advérbio «sempre» (cfr Gen 4,24): « De modo que não encerrou o Senhor o perdão num número determinado, mas deu a entender que se tem de perdoar continuamente e sempre» (Hom. sobre S. Mateus, 6). Também se pode observar aqui um contraste entre a atitude mesquinha dos homens em perdoar com cálculo e a misericórdia infinita de Deus. Por outro lado, a nossa situação de devedores relativamente a Deus fica muito bem reflectida na parábola. Um talento equivalia a seis mil denarios e um denário era o jornal diário de um trabalhador. A dívida de dez mil talentos é uma quantidade exorbitante que nos dá ideia do valor imenso que tem o perdão que recebemos de Deus. Contudo, o ensinamen­to final da parábola é o de perdoar sempre e do íntimo do coração aos nossos irmãos. «Esforça-te, se é preciso, por perdoar sempre aos que te ofenderem, desde o primeiro instante, já que, por maior que seja o prejuízo ou a ofensa que te façam, mais te tem perdoado Deus a ti» (Caminho, n.°452).

 

11.03.2015 – Mt 5, 17-19

17Não julgueis que vim abolir a Lei ou os Profetas. Não vim abolir mas cumprir.

18Em verdade vos digo: até que passem os Céus e a Terra, nem um só jota ou um só til da Lei passará, sem que tudo se cumpra.

19Portanto, quem transgredir um só destes mandamentos mais pequenos e ensinar assim aos homens, será o mais pequeno no Reino dos Céus. Mas quem os observar e ensinar, esse será grande no Reino dos Céus.

Comentário

17-19. Jesus ensina neste passo o valor perene do Antigo Testamento, enquanto é palavra de Deus; goza, portanto, de autoridade divina e não pode desprezar-se o mínimo. Na Antiga Lei havia preceitos morais, judiciais e litúrgicos. Os preceitos morais do AT conservam no Novo o seu valor, porque são principalmente promulgações concretas, divino-positivas, da lei natural. Nosso Senhor dá-lhes, contudo, a sua significação e as suas exigências mais profundas. Os preceitos judiciais e cerimoniais, pelo contrário, foram dado por Deus para uma etapa concreta na História da Salvação, a saber, até à vinda de Cristo; a sua observância material em si não obriga os cristãos (cfr Suma Teológica, I-II, q.108, a. 3 ad 3).

A lei promulgada por meio de Moisés e explicada pelos Profetas constituía um dom de Deus para o povo, como antecipação da Lei definitiva que daria Cristo o Messias. Na verdade, como definiu o Concilio de Trento, Jesus não só «foi dado aos homens como Redentor em quem confiem, mas também como Legislador a quem obedeçam» (De justificatione, can. 21).

12.03.2015 – Lc 11, 14-23

14Jesus estava a expulsar um Demônio e este era mudo. Saído o Demônio, o mudo falou, e as multidões ficaram admiradas, de Deus 15Disseram, porém, alguns dentre eles: É por Belzebu, Príncipe dos Demônios, que Ele expulsa os Demônios. 16Outros, para O expe­rimentarem, solicitavam da Sua parte um sinal do céu. 17Mas Ele, que conhecia os pensamentos deles, disse-lhes: Todo o reino que se dividiu contra si mesmo ficará devas­tado, caindo casa sobre casa. 18Então, se Satanás, também, se dividiu contra si mesmo, como há-de manter-se o seu reino? Pois vós dizeis que por Belzebu é que Eu expulso os Demônios!… 19Mas se Eu expulso os Demônios por Belzebu, por quem os expulsam os vossos filhos? Por isso é que eles mesmos serão vossos juízes! 20Mas, se Eu expulso os Demônios pelo dedo de Deus, é que chegou até vós o Reino de Deus.

21Quando um homem forte e bem armado guarda o seu palácio, estão em segurança os seus haveres. 22Mas, quando surge um mais forte do que ele e o vence, tira-lhe o equipa­mento em que estava confiado e distribui-lhe os despojos.

23Quem não está comigo é contra Mim, e quem não junta comigo dispersa.

Comentário

14-23. A obstinação dos inimigos de Jesus não cede nem diante da evidência do milagre. Uma vez que não podem negar o valor extraordinário do facto, atribuem-no a artes demoníacas, com o intento de negar que Jesus é o Messias. O Senhor replica-lhes com um raciocínio que não admite escapatória: as expulsões de demônios que faz são provas evidentes de que com Ele chegou o Reino de Deus. O Concilio Vaticano II recordou de novo esta verdade: «O Senhor Jesus deu início à Sua Igreja pregando a boa nova do advento do Reino de Deus prometido desde há séculos nas Escrituras (…). Também os milagres de Jesus comprovam que já chegou à terra o Reino: «Se lanço fora os demônios com o poder de Deus, é que chegou a vós o Reino de Deus (Lc 11,20; cfr Mt 12,28). Mas este Reino manifesta-se sobretudo na própria pessoa de Cristo, Filho de Deus e Filho do homem, que veio para servir e dar a Sua vida em redenção por muitos (Mc 10,45)» (Lumen gentium, n° 5).

O forte e bem armado é o demônio (v. 21), que com o seu poder tinha escravizado o homem; mas Jesus Cristo, mais forte que ele, veio, venceu-o e está a desalojá-lo de onde se tinha assenhoreado. São Paulo dirá que Cristo «despojou os principados e às potestades, triunfando publicamente sobre eles» (Col 2,15).

Depois da vitória de Cristo, o « mais forte », as palavras do V. 23 são uma séria advertência aos que O escutavam, e a toda a humanidade: ainda que o não queiram reconhecer Jesus Cristo venceu, e doravante não é admissível a neutralidade diante da Sua causa: quem não estiver com Ele, está contra Ele.

18. O argumento de Cristo é claro. Um dos maiores males que podem sobrevir à Igreja é precisamente a divisão entre os cristãos, a desunião dos crentes. Temos de fazer nossa a oração de Jesus: «Que todos sejam um; como Tu, Pai, em Mim e Eu em Ti, que assim eles estejam em Nós, para que o mundo creia que Tu Me enviaste» (Ioh 17,21).

13.03.2015 – Mc 12, 28b-34

28Um escriba, que os tinha ouvido disputar e visto quão bem lhes respondera, aproxi­mou-se e perguntou-Lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos? 29O primeiro — respondeu Jesus — é: Ouve Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor30e ama o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças. 31O segundo é: Ama o teu próximo como a ti mesmo. Não há nenhum mandamento maior que estes. 32Disse-Lhe o escriba: Mestre, disseste verdadeiramente bem que é único e não há outro fora d’Ele, 33e que amá-Lo de todo o coração, e de toda a inteligência, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo vale mais que todos os holocaustos e sacrifícios.34Jesus, ao ver que tinha respondido atinadamente, disse-lhe: Não estás longe,do Reino de Deus. E ninguém mais ousava interrogá-Lo.

Comentário

28-34. O doutor da lei que faz a pergunta mostra uma atitude leal diante de Jesus Cristo porque busca sinceramente a verdade. Ficou impressionado diante da resposta precedente de Jesus (vv. 18-27), e aproxima-se com desejos de conhecer melhor os ensinamentos do Mestre. A sua pergunta é acertada e Jesus entretém-se a instruir este homem, pertencente a um grupo, os escribas, sobre o qual vai lançar as acusações mais fortes (cfr Mc 12,38 ss.).

Mas Jesus não vê no personagem que d’Ele se aproxima apenas um escriba mas uma alma que busca a verdade. E os ensinamentos de Jesus penetram no seu coração: aquele homem repete-os saboreando-os, e o Senhor terá para ele uma palavra carinhosa que incita à conversão definitiva: «Não estás longe do Reino de Deus». Este encontro faz-nos recordar o que teve com Nicodemos (cfr Ioh3, 1 ss.). Sobre o conteúdo doutrinai destes dois mandamentos cfr a nota a Mt 22,34-40.

14.03.2015 – Lc 18, 9-14

9Disse também a seguinte parábola, para alguns, que estavam intimamente convencidos de que eram justos e desprezavam os demais: 10Subiram ao Templo dois homens para orar: um fariseu e o outro publicano. 11O fariseu, perfilado, fazia lá consigo esta oração: «Ó Deus, dou-Te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros, ou ainda como este publi­cano. 12Jejuo duas vezes por semana; pago o dízimo de tudo quanto recebo». 13E o publi­cano, mantendo-se a distância, não ousava nem sequer erguer os olhos ao Céu, mas batia no peito, dizendo: «Ó Deus, sé clemente para comigo, que sou pecador!». 14Eu vos digo: Desceu este justificado para sua casa, ao contrário do outro, porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado.

Comentário

9-14. O Senhor completa o Seu ensinamento sobre a oração; além de ser perseverante e cheia de fé, a oração deve brotar de um coração humilde e arrependido dos seus pe­cados: Cor contritum et humiliatum, Deus, non despicies (Ps 51,19), o Senhor, que nunca despreza um coração contrito e humilhado, resiste aos soberbos e dá a Sua graça aos humildes (cfr 1 Pet 5,5; lac 4,6).

A parábola apresenta dois tipos humanos contrapostos: o fariseu, meticuloso no cumprimento externo da Lei; e o publicano, pelo contrário, considerado pecador público (cfr Lc 19,7). A oração do fariseu não é agradável a Deus devido ao seu orgulho, que o leva a fixar-se em si mesmo e a desprezar os outros. Começa a dar graças a Deus, mas é óbvio que não se trata de verdadeira acção de graças, visto que se ufana do bem que fez, e não é capaz de reconhecer os seus pecados; como pensa que já é justo, não tem necessi­dade, segundo ele, de ser perdoado; é, efectivamente, per­manece nos seus pecados; a ele se aplica também o que disse o Senhor noutra ocasião a um grupo de fariseus: «Se fósseis cegos não teríeis pecado, mas agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece» (Ioh 9,41). O fariseu baixou do Templo, pois, com os seus próprios pecados.

Pelo contrário, o publicano reconhece a sua indignidade e arrepende-se sinceramente: estas são as disposições neces­sárias para ser perdoado por Deus. A jaculatória do publi­cano, que exprime tais sentimentos, alcança o perdão divino: «Com razão, explica São Francisco de Sales, alguns disseram que a oração justifica, porque a oração contrita ou a contrição orante eleva a alma a Deus, une-a à Sua bondade e obtém o Seu perdão em virtude do amor divino que lhe comunica este santo movimento. Por conseguinte, devemos sentir-nos fortes com tais jaculatórias, feitas com actos de dor amorosa e com desejos de divina reconciliação a fim de que, por meio delas, expressando diante do Salvador as nossas angústias (Ps 142,2), confiemos a alma ao Seu Coração misericordioso que a receberá com piedade» (Tratado do amor de Deus, liv. 2, cap. 20).

15.03.2015 – Jo 3, 14-21

14Do mesmo modo que Moisés elevou a serpente no deserto, assim tem de ser elevado o Filho do homem, 15para que todo aquele que acredita tenha, por Ele, a vida eterna.

16De facto, Deus amou de tal maneira o mundo que deu o Seu Filho único, para que todo o que n’Ele acredita náo pereça, mas tenha a vida eterna. 17É que Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para o mundo ser salvo por Seu inter­médio. 18Quem n’Ele acredita não é condenado; mas quem não acredita já está conde­nado, porque não acreditou no nome do Filho único de Deus. 19É esta a causa da con­denação: veio a Luz ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a Luz, pois eram más as suas obras. 20E que todo aquele que pratica más acções odeia a Luz e não se aproxima da Luz, para não serem postas a descoberto as suas obras. 21Quem pratica a verdade aproxima-se da Luz, para se tornar bem claro que as suas obras estão realizadas em Deus.

Comentário

14-15. A serpente de bronze, alçada por Moisés num mastro, era o remédio indicado por Deus para curar aqueles que eram mordidos pelas serpentes venenosas do deserto (cfr Num 21,8-9). Jesus Cristo compara este facto com a Sua Crucifixão, para explicar assim o valor da Sua exaltação na Cruz, que é salvação para todos os que O fixem com fé. Neste sentido podemos dizer que no bom ladrão se cumpre já o poder salvífico de Cristo na Cruz: esse homem descobriu no Crucificado o Rei de Israel, o Messias, que imediatamente lhe promete o Paraíso para aquele mesmo dia (cfr Lc 23,39-43).

O Filho de Deus tomou a nossa natureza humana para dar a conhecer os mistérios ocultos da vida divina (cfr Mc 4,11; Ioh 1,18; 3,1-13; Eph 3,9) e para livrar do pecado e da morte aqueles que O fixem com fé e amor (cfr Ioh 19,37; Gal 3,1) e aceitem a cruz de cada dia.

A fé de que nos fala o Senhor não se reduz simplesmente à aceitação intelectual das verdades que Ele nos ensinou, mas inclui reconhecê-Lo como Filho de Deus (cfr l Ioh5,1), parti­cipar da Sua própria Vida (cfr Ioh1,12), e entregarmo-nos por amor, tornando-nos assim semelhantes a Ele (cfr Ioh10,27; 1 Ioh3,2). Mas esta fé constitui um dom de Deus (cfr Ioh3,3.5-8), a quem devemos pedir que a fortaleça e acres­cente, como fizeram os Apóstolos: Senhor, «aumenta-nos a fé» (Lc 17,5). Sendo a fé um dom divino, sobrenatural e gratuito, é, ao mesmo tempo, uma virtude, um hábito bom, susceptível de ser exercitado pessoalmente e, portanto, robustecido através desse exercício. Daí que o cristão, que já possui o dom divino da fé, ajudado pela graça deva fazer actos explícitos de fé para que esta virtude cresça nele.

16-21. Com estas palavras carregadas de sentido sinte­tiza-se como a Morte de Jesus Cristo é a manifestação suprema do amor de Deus pelos homens (cfr Introdução ao Evangelho segundo São João, parágrafo sobre A caridade, pp 1101-1105). «De tal maneira Deus amou o mundo que lhe entregou Seu Filho Unigênito para a sua salvação. Toda a nossa religião é uma revelação da bondade, da misericórdia, do amor de Deus por nós. ‘Deus é amor’ (cfr 1Ioh4,16), isto é, amor que se difunde e se prodigaliza; e tudo se resume nesta grande verdade que tudo explica e tudo ilumina. É neces­sário ver a história de Jesus a esta luz. ‘Ele amou-me’, escreve São Paulo, e cada um de nós pode e deve repeti-lo a si mesmo: Ele amou-me, e sacrificou-Se por mim (Gal 2,20)» (Homília do Corpus Christi).

A entrega de Cristo constitui o chamamento mais pre­mente a corresponder ao Seu grande amor: «Se Deus nos criou, se nos redimiu, se nos ama ao ponto de entregar por nós o Seu Filho Unigênito (Ioh III, 16), se nos espera — todos os dias! — como aquele pai da parábola esperava o filho pródigo (cfr Lc XV, 11-32). como não há-de desejar que O tratemos com amor? O que seria estranho era não falar com Deus, afastar-se d’Ele, esquecê-Lo, dedicar-se a actividades estranhas a esses toques ininterruptos da graça» (Amigos de Deus, n° 251).

«O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se o não experimenta e se o não torna algo seu próprio, se nele não participa vivamente. E por isto precisamente Cristo Redentor (…) revela plena­mente o homem ao próprio homem. Esta é — se assim é lícito exprimir-se — a dimensão humana do mistério da Redenção. Nesta dimensão o homem reencontra a grandeza, a dignidade e o valor próprios da sua humanidade (…). O homem que quiser compreender-se a si mesmo profun­damente (…) deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. Ele deve, por assim dizer, entrar n’Ele com tudo o que é em si mesmo, deve ‘apro­priar-se’ e assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para se encontrar a si mesmo. Se no homem se actuar este processo profundo, então ele produz frutos, não somente de adoração de Deus, mas também de profunda maravilha perante si próprio. Que grande valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se ‘mereceu ter um tal e tão grande Redentor’ (Missal Romano, Hino Exultet da Vigília Pascal), se ‘Deus deu o Seu Filho’, para que ele, o homem, ‘não pereça, mas tenha a vida eterna’.

«(…) A Igreja, que não cessa de contemplar o conjunto do mistério de Cristo, sabe com toda a certeza da fé, que a Redenção que se verificou por meio da Cruz, restituiu defini­tivamente ao homem a dignidade e o sentido da sua existência no mundo, sentido que ele havia perdido em consi­derável medida por causa do pecado. E por isso a Redenção realizou-se no mistério pascal, que, através da cruz e da morte, conduz à ressurreição» (Redemptor hominis, n. 10). Jesus Cristo exige como primeiro requisito para parti­cipar do Seu amor a fé n’Ele. Com ela passamos das trevas para a luz e entramos em caminho de salvação. «Quem não acredita já está condenado» (v. 18). «As palavras de Cristo são, ao mesmo tempo, palavras de juízo e de graça, de morte e de vida. É que só infligindo a morte ao que é velho podemos ter acesso à novidade de vida: e isto, que vale, em primeiro lugar, das pessoas, vale também dos diversos bens deste mundo que estão marcados tanto pelo pecado do homem como pela bênção de Deus (…). Por si mesmo e pelas próprias forças não há ninguém que se liberte do pecado e se eleve acima de si mesmo, ninguém absolutamente que se liberte a si mesmo da sua enfermidade, da sua solidão ou da sua escravidão, mas todos precisam de Cristo como modelo, mestre, libertador, salvador, vivificador. De facto, na história humana, mesmo sob o ponto de vista temporal, o Evangelho foi um fermento de liberdade e de progresso e apresenta-se sempre como fermento de fraternidade, de unidade e de paz» (Ad gentes, n. 8).

16.03.2015 – Jo 4, 43-54

43Passados os dois dias, partiu dali para a Galileia. 44O próprio Jesus tinha efectivamente declarado que um profeta, na sua terra, não é tido em apreço. 45Quando chegou à Galileia, receberam-No os Galileus, que tinham visto quanto Ele fizera em Jeru­salém, pela festa, pois eles também tinham ido à festa.

46Veio então novamente a Cana da Galileia, onde tinha convertido a água em vinho. Ora, em Cafarnaum, havia um funcionário real, cujo filho se encontrava doente. 47Ao ouvir dizer que Jesus chegara da Judeia à Galileia, veio ter com Ele e pôs-se a pedir que fosse lá abaixo curar-lhe o filho, que estava a morrer. 48Disse-lhe então Jesus: Se não virdes milagres e prodígios, não haveis de acreditar! 49Senhor — diz-Lhe o funcio­nário real — vem cá abaixo antes que o meu filhinho morra. 50Jesus responde-lhe: Vai, teu filho está vivo! O homem acreditou na palavra que Jesus lhe tinha dito e pôs-se a caminho.

51Já ele vinha na descida, quando lhe vie­ram os criados ao encontro, dizendo que o menino estava vivo. 52Perguntou-lhes a que horas tinha ele melhorado. Responderam-lhe: Foi ontem, à hora sétima, que a febre o deixou. 53O pai reconheceu então que tinha sido àquela hora que Jesus lhe havia dito: «Teu filho está vivo!». E acreditou, ele e todos os de sua casa. 54Foi este o segundo milagre que Jesus fez, ao voltar da Judeia para a Galileia.

Comentário

46. São João fala de um funcionário real, provavel­mente ao serviço de Herodes Antipas que, ainda que fosse somente tetrarca ou governador da Galileia (cfr Lc 3,1), podia receber também o título de rei (cfr Mc 6,14). Trata-se portanto de uma pessoa de alta categoria social (v. 51). que residia em Cafarnaum, cidade alfandegária. Por isto supõe São Jerónimo que devia ser um palatinus, um cortesão de palácio, como sugere o termo grego correspondente.

48. Jesus parece dirigir-Se não tanto ao funcionário real como à gente da Galileia que acorria a Ele só para pedir milagres e ver prodígios. Noutra ocasião o Senhor censu­raria as cidades de Corozaim. Betsaida e Cafarnaum pela sua incredulidade (Mt 11,21 -23), porque os milagres que fez ali teriam movido à penitência as cidades fenícias de Tiro e de Sidónia e inclusivamente a própria Sodoma. Os Galileus em geral estavam mais dispostos para ver manifestações extraordinárias do que para escutar a Sua palavra. Mais adiante, depois do milagre da multiplicação dos pães, buscarão o Senhor para O fazerem rei, mas nem todos acreditarão no anúncio da Eucaristia (Ioh 6,15.53.62). Jesus pede uma fé firme e pura, que, ainda que se apoie em milagres, não os exige. Não obstante, Deus continua em todos os tempos a fazer milagres, que servem para reafirmar a fé. «Não sou ‘milagreiro’. — Disse-te já que me sobejam milagres no Santo Evangelho para firmar fortemente a minha fé. — Mas dão-me pena esses cristãos — até piedosos, ‘apostólicos’ — que sorriem quando ouvem falar de cami­nhos extraordinários, de factos sobrenaturais. — Sinto desejos de lhes dizer: sim, também agora há milagres; nós próprios os faríamos se tivéssemos fé!» (Caminho, n.° 583).

49-50. Apesar da atitude aparentemente fria de Jesus, o «nobre» insiste a manifestar o seu sofrimento interior: «Senhor, vem cá abaixo antes que o meu filhinho morra». Ainda que imperfeita, a sua fé tinha sido suficiente para percorrer os 33 quilômetros que separam Cafarnaum de Cana; e, não obstante a sua elevada posição, tinha-se apro­ximado do Senhor pedindo ajuda. Jesus gosta da perse­verança e da humildade deste homem. O pedido feito com fé alcança o seu objectívo:

«‘Si habueritiis fidem, sicut granum sinapis!’ — Se tivesses uma fé do tamanho de um grãozito de mostarda!…

«— Que promessas não encerra esta exclamação do Mestre!» (Caminho n.0 585).

Os Santos Padres comparam este milagre ao servo do Centurião (Mt 8,5-12; Lc 7,1-10), pondo em realce a fé surpreendente que desde o primeiro momento manifesta o oficial romano, em contraste com’ a imperfeita fé inicial do personagem de Cafarnaum. São João Crisóstomo comenta: «Ali (no caso do centurião romano), a fé era robusta, por isso Jesus prometeu ir para que nós aprendamos a devoção daquele; aqui a fé era ainda imperfeita, e não sabia com clareza que Jesus podia curar estando longe: assim que o Senhor, negando-Se a descer, quis com isto ensinar a ter fé» (Hom. sobre S. João, 35).

53. O milagre da cura é força convincente que atrai à fé aquele homem e com ele toda a sua família- Todo o bom pai de família deve aproveitar os episódios domésticos para procurar que os seus acedam à fé. Assim diz São Paulo: «Se alguém não cuida dos seus e principalmente de sua casa, negou a fé e é pior que um infiel» (1Tim 5,8). Cfr Act 16,14, onde se narra que Lídia cuidou de que com ela fosse baptizada toda a sua família; em Act 18,8, refere-se a mesma atitude do chefe da sinagoga Crispo, e em Act16,33 a do guarda da prisão.

17.03.2015 – Jo 5, 1-3a.5-16

Depois disto, houve uma festa dos Judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. 2Ora existe em Jerusalém, junto à Piscina das Ovelhas, uma que, em hebraico, se chama Bezatá, que tem cinco pórticos. 3Nestes jazia grande número de enfermos, cegos, coxos, entrevados.

5Estava ali um homem, enfermo havia trinta e oito anos. 6Jesus, ao vê-lo estendido e sabendo que já estava assim havia muito tempo, diz-lhe: Queres ficar são? 7Senhor — responde-Lhe o enfermo — não tenho nin­guém que me lance na piscina, quando a água se agitar; e enquanto eu vou, outro desce antes de mim. 8Diz-lhe Jesus: Levanta-te, toma o teu catre e anda. 9E logo o homem ficou são, tomou o catre e pôs-se a caminhar.

Ora aquele dia era um sábado. 10Diziam, por isso, os Judeus ao miraculado: É sábado e não podes levar esse catre. 11Mas ele res­pondeu-lhes: Quem me curou é que me disse: «Toma o teu catre e anda». 12Perguntaram-lhe então: Quem é o homem que te disse: «Toma o teu catre e anda »? 13Mas o que tinha sido curado não sabia quem era, pois Jesus havia-Se afastado, por haver muita gente no local.

14Em seguida, encontrou-o Jesus no Templo e disse-lhe: Ficaste curado. Não tornes a pecar, para não te suceder coisa pior. 15O homem foi dizer aos Judeus que tinha sido Jesus que o curara. 16Por isso os Judeus perseguiam Jesus, visto Ele fazer tais coisas ao sábado.

Comentário

1. Não é possível determinar com certeza de que festa se trata; provavelmente refere-se à Páscoa, conhecida inclusivamente no mundo greco-romano como a festa nacional do povo judaico. Mas também poderia referir-se a outras festas, como a de Pentecostes. (Sobre esta questão veja-se Cronologia da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, parágrafo 3, Duração do Ministério Público, pp. 88-89).

2. A esta piscinachama-se também «probática» por estar situada, nos Subúrbios de Jerusalém, junto à porta probática ou das Ovelhas (cfr Neh 3,1-32; 12,39), pela qual entrava o gado que\se destinava aos sacrifícios do Templo. Em fins do século XIX encontraram-se vestígios da piscina: escavada em rocha\ era de forma rectangular e estava rodeada de quatro galerias ou alpendres, e um quinto alpendre dividia o tanque em duas metades quase quadra­das.

3-4. Os Santos Padres ensinam que essa piscina prefigura o Baptismo cristão. Mas assinalam que enquanto na piscina de Bezatá se curavam as doenças do corpo, no Baptismo curam-se as da alma; ali era de vez em quando e para um só doente; no Baptismo é sempre e para todos; em ambos os casos manifesta-se o poder de Deus por meio da água (cfr Hom. sobre S. João, 36,1).

A edição Sixto-Clementina da Vulgata recolhe, como segunda parte do v. 3 e constituindo todo o v. 4, o seguinte passo: 3bexspectantium aquae motum. 4Angelus autem Domini descendebat secundum tempus in piscinam et move-batur aqua. Et qui prior descendisset in piscinam post motionem aquae sanus fiebat a quacumque detinebatur infirmitate» (3b«que aguardavam o movimento da água. 4Pois um anjo do Senhor descia de vez em quando à piscina e movia a água. O primeiro que se metesse na piscina depois do movimento da água ficava são de qualquer enfermidade que tivesse»). A Neo-vulgata, pelo contrário, omite no seu texto todo este passo, consignando-o apenas em nota de rodapé. Tal omissão funda-se em que não vem em impor­tantes códices e papiros gregos, nem em muitas versões antigas.

14. Possivelmente o paralítico tinha acorrido ao Templo para dar graças a Deus pela sua cura. Jesus vem ao seu encontro e recorda-lhe que mais importante que a saúde do corpo é a saúde da alma.

O Senhor recorre ao santo temor de Deus como incentivo na luta contra o pecado: «Não tornes a pecar para não te suceder coisa pior». Este bom temor que nasce do respeito por nosso Pai Deus/ compagina-se perfeitamente com o amor. Assim como os filhos amam e respeitam os pais, e procuram evitar-lhes desgostos também por temor ao castigo, de modo semelhante nós temos de lutar contra o pecado em primeiro lugar porque é uma ofensa a Deus, mas também porque podemos ser castigados nesta vida e, sobretudo, na outra.

18.03.2015 – Jo 5, 17-30

17Mas Jesus respondeu-lhes: Meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho. 18Daqui resultou que os Judeus mais se esforçavam por Lhe dar a morte, não só por violar o sábado, mas também por chamar a Deus Seu próprio Pai, fazendo-Se igual a Deus.

19Entáo Jesus tomou a palavra e pôs-Se a dizer-lhes: Em verdade, em verdade vos digo: Não pode o Filho fazer nada por Si mesmo, se não vir o Pai fazer alguma coisa; pois aquilo que Este faz, também o Filho o faz igualmente. 20De facto, o Pai ama o Filho e mostra-Lhe tudo o que Ele mesmo faz; e há-de mostrar-Lhe obras maiores do que estas, de modo que ficareis admirados. 21Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá vida, assim também o Filho dá vida àqueles que quer. 22O Pai, de facto, não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento, 23para todos honrarem o Filho como honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai, que O enviou.

24Em verdade, em verdade vos digo: Quem ouve a Minha palavra e acredita n’Aquele que Me enviou tem a vida eterna e não incorre em condenação, mas já transitou da morte para a vida. 25Em verdade, em ver­dade vos digo: Vai chegar a hora — e é já — em que os mortos hão-de ouvir a voz do Filho de Deus; e os que ouvirem viverão! 26Pois, assim como o Pai tem a vida em Si mesmo, assim também concedeu ao Filho o ter a vida em Si mesmo; 27e deu-Lhe o poder de julgar, por ser Filho de homem. 28Não vos admireis com isto, porque vai chegar a hora em que todos os que estão nos túmulos hão-de ouvir a Sua voz; 29os que tiverem feito boas obras ressuscitarão para a vida, e os que tiverem praticado más acções hão-de ressuscitar para a condenação. 30Eu nada posso fazer por Mim mesmo. Conforme oiço é que julgo, e é justo o Meu juízo, porque não busco a Minha vontade, mas a vontade d’Aquele que Me enviou.

Comentário

16-18. A Lei de Moisés assinalava o sábado como o dia de descanso semanal. Desta forma os Judeus pensavam imitar a maneira de agir de Deus na Criação. Observa São Tomás de Aquino que Jesus rejeita a estreita interpretação que davam os Judeus: «Estes, querendo imitar a Deus, não faziam nada ao sábado, como se Deus neste dia tivesse deixado absolutamente de actuar. É verdade que ao sábado descansou da criação de novas criaturas, mas sempre e de forma contínua actua, conservando-as no ser… Deus é causa de todas as coisas no sentido de que também as faz subsistir; porque se num momento dado se interrompesse o Seu poder, imediatamente deixariam de existir todas as coisas que a natureza contém» (Comentário sobre S. João, ad loc.). «Meu Pai trabalha continuamente e Eu também tra­balho»: Já dissemos que Deus não deixa de actuar depois da Criação. Como o Filho actua junto com o Pai, que com o Espí­rito Santo são um só Deus, por esta razão Nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, pode dizer que não deixa de trabalhar. Estas palavras.de Jesus fazem referência implí­cita à Sua natureza divina, e assim o entenderam os Judeus, os quais, considerando-as uma blasfêmia, quiseram dar-Lhe a morte. Todos — comenta Santo Agostinho — chamamos a Deus «Pai Nosso que estais nos Céus» (Is 63,16; 64,8). Não se enfureciam, portanto, porque dissesse que Deus era Seu Pai, mas porque Lhe chamava Pai de maneira muito diferente de como Lhe chamam os homens. Vede como os Judeus veem; os arianos, pelo contrário, não querem ver. Estes dizem que o Filho não é igual ao Pai, e daqui surge uma heresia que aflige a Igreja. Vede como até os próprios cegos e os mesmos que mataram Cristo entenderam o sentido das palavras do Senhor (In Ioann. Evang., 17,l). Nós chamamos a Deus nosso Pai porque somos filhos adoptivos pela graça; Jesus Cristo chama a Deus Seu Pai porque é o Filho por natureza. Por isso diz depois de ressuscitar: Subo para Meu Pai e vosso Pai (Ioh 20,17), distinguindo assim com clareza essas duas maneiras diferentes de ser filhos de Deus.

19. Jesus fala da igualdade e ao mesmo tempo da distinção entre o Pai e o Filho. Os dois são iguais: todo o poder do Filho é o poder do Pai, as obras do Filho são as obras do Pai. Ao mesmo tempo são duas Pessoas distintas: por isso o Filho faz o que viu fazer ao Pai.

Não se devem entender estas palavras do Senhor no sentido de que o Filho veja o que o Pai faz e que depois repita o que viu, como um discípulo que imita o professor; mas com esta frase indica-se a comunicação de poderes do Pai para o Filho por geração. Emprega-se o verbo «ver» porque o homem conhece através dos sentidos, especialmente da vista; dizer que o Filho vê o que faz o Pai é um modo de falar dos poderes que desde toda a eternidade recebe d’Ele (cfr Comentário sobre S. João, ad loc.).

20-21. Quando se diz que o Pai mostra ao Filho «tudo o que Ele mesmo faz » indica-se que Cristo pode fazer o mesmo que o Pai. Assim, quando Jesus Cristo realiza obras que são próprias de Deus, está a testemunhar com elas a Sua Divindade (cfr Ioh 5,36).

«Obras maiores»: Pode referir-se aos milagres que Jesus realizará na Sua vida e ao poder de julgar. Mas o milagre por excelência de Jesus é a Sua própria Ressurreição, causa e primícia da nossa (cfr l Cor 15,20 ss.) e da aquisição para nós da vida sobrenatural. O poder vivificador de Cristo é total, tal como o do Pai. Este ensinamento desenvolve-se ao longo dos versículos seguintes até ao 29.

22-30. O poder de julgar também foi dado pelo Pai ao Verbo Encarnado. O juízo será condenatório para quem não crer em Cristo e na Sua palavra (cfr 3,18). É necessário reconhecer o senhorio de Jesus Cristo, sabendo que só ao aceitar o Filho feito homem honramos o Pai; aquele que não honra Jesus, também não honra o Pai (v. 23). Por esta acei­tação de Cristo, da Sua palavra, possuímos a vida eterna e somos libertados da condenação. Ele, assumida já de modo inseparável a Sua Humanidade, é constituído juiz, e o Seu juízo é justo porque busca cumprir a Vontade do Pai que O enviou, e não faz nada por conta própria; isto é, a Sua vontade humana está perfeitamente identificada com a Sua vontade divina: por isso pode afirmar Jesus que não faz a Sua vontade mas a Vontade do que O enviou.

22. Deus, por ser o Criador do mundo, é o Juiz supremo de todas as criaturas. Só Ele pode saber com toda a profundidade se estas criaturas cumprem o fim que Ele lhes marcou. Jesus Cristo, Verbo Encarnado, recebe os poderes divinos (cfr Mt 11,27;28,18; Dan7,14), entre eles o de julgar os homens. Ora bem, a Vontade de Deus é que estes se salvem: Cristo não veio para um juízo de condenação, mas de salvação (cfr Ioh12,47). Unicamente o que não aceitar esta missão divina do Filho se coloca a si mesmo fora do âmbito da salvação. Como ensina o Magistério: «Que o poder judi­cial Lhe tenha sido dado por Seu Pai, o próprio Jesus Cristo o proclama diante dos Judeus que Lhe atiram à cara ó ter violado o descanso do sábado ao curar o paralítico (…). Este poder supõe o direito de impor prêmios e castigos aos homens, mesmo nesta vida» (Quas primas, Dz-Sch 3677). Jesus Cristo, portanto, é Juiz de vivos e de mortos, e retri­buirá a cada um segundo as suas obras (cfr 1 Pet 1,17).

«É certo que de todas as nossas culpas temos de prestar estreitas contas ao eterno Juiz; mas, quem será este nosso Juiz? O Pai (…) deu todo o juízo ao Filho. Consolemo-nos, pois, já que o Eterno Pai pôs a nossa causa nas mãos do nosso próprio Redentor. São Paulo anima-nos com estas palavras: Quem será o que condene? Cristo, Jesus, o que morreu (…) é Quem (…) intercede por nós (Rom 8,34). Quem é o juiz que nos há-de condenar? O próprio Salvador que, para não nos condenar à morte eterna, quis condenar-Se a Si mesmo e,por conseguinte, morreu e, não contente com isso, agora no Céu prossegue junto do Pai sendo mediador da nossa sal­vação» (Prática de amor a Jesus Cristo, cap. 3).

24. Escutar a palavra de Cristo e crer n’Aquele que O enviou, isto é, no Pai, são duas expressões intimamente rela­cionadas. O que diz Jesus Cristo é revelação divina; por isso, aceitar as palavras de Jesus equivale a crer em Deus Pai: «Aquele que crê em Mim, não crê em Mim, mas n’Aquele que Me enviou (…). Porque Eu não falei por Mim Mesmo, mas o Pai que Me enviou, ordenou-Me o que hei-de dizer e falar» (Ioh12,44.49).

Aquele que tem fé está no caminho da vida eterna, porque participa, já nesta vida terrena, da vida divina que é eterna; mas não a conseguiu definitivamente — porque pode perdê-la —, nem em plenitude: «Queridos, agora somos filhos de Deus mas ainda não se manifestou o que seremos (…), quando se manifestar seremos semelhantes a Ele» (l Ioh3,2). Para aquele que se mantém firme na fé, e vive de acordo com as suas exigências, o juízo divino não será condenatório mas salvador.

Portanto, vale a pena esforçar-se, apoiados na graça, por viver uma vida coerente com a fé: «Se se procurar com tanto empenho, com tanto trabalho e com tanto esforço viver aqui um pouco mais, quanto não deverá fazer-se para viver eternamente?» (De verb. Dom. semi., 64).

25-30. Com estes vv encerra-se a primeira parte do dis­curso do Senhor, que abarca de5,19 a 5,47, e cujo núcleo essencial é a revelação acerca da Sua relação com o Pai. Para compreender as afirmações que o Senhor faz aqui há que ter presente que Ele, por ser uma única Pessoa (divina), um só sujeito de operações, um único Eu, exprime em palavras humanas não só os sentimentos que tem como homem, mas também a realidade mais profunda do Seu ser: é o Filho de Deus, tanto na Sua geração eterna pelo Pai, como na Sua geração no tempo ao assumir a natureza humana. Daqui que Jesus Cristo tenha uma consciência tão viva e profunda — inimaginável para nós — da Sua filiação, que O leva a tratar o Pai com uma intimidade singularíssima, com amor e, ao mesmo tempo, com respeito; está consciente ao mesmo tempo da Sua igualdade com o Pai; por isso, quando fala de que o Pai Lhe deu a vida (v. 26), ou Lhe deu o poder (v. 27), não é que tenha recebido uma parte, mas a totalidade da própria vida — «em si mesmo» — ou do próprio poder, sem que o Pai os perca.

«Vês como mostra a igualdade e como a única diferença consiste em que um é o Pai e outro o Filho. Porque a expressão ‘deu’ introduz esta única diferença e demonstra que tudo o resto é igual. Daí se segue que Ele (Cristo) faz todas as coisas com a mesma potestade e com o mesmo poder que o Pai e que não toma a Sua força senão d’Ele» (Hom. sobre S. João, 39,3).

Maravilha-nos neste passo do Evangelho como na estreiteza da linguagem humana Jesus Cristo exprimiu os sentimentos do Seu único Eu: a Segunda Pessoa da Santís­sima Trindade que assumiu no tempo (e a partir desse momento para sempre) a natureza humana. É um mistério que o cristão deve contemplar, ainda que não o possa com­preender; só pode sentir-se inundado por uma luz tão potente que supera a sua capacidade de compreensão, mas enche a sua alma de fé e de desejos de adoração.

19.03.2015 – Mt 1, 16.18-21.24a.

16Jacob gerou a José, o esposo de Maria da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.

18Ora o nascimento de Jesus foi assim: Estando Maria, sua Mãe, desposada com José, antes de morarem juntos, notou-se que tinha concebido por virtude do Espírito Santo. 19José, seu esposo, como era justo e não a queria infamar, resolveu deixá-la secretamente. 20Mas, andando ele com este pensamento, apareceu-lhe, em sonhos, um anjo do Senhor, que lhe disse:

— José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que nela se gerou, é obra do Espírito Santo. 2lEla dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados.

24E José, despertando do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu a sua esposa.

Comentário

16. Entre os Hebreus as genealogias faziam-se por via masculina. José, como esposo de Maria, era o pai legal de Jesus. A figura do pai legal é equivalente quanto a direitos e obrigações à do verdadeiro pai. Neste facto se fundamenta solidamente a doutrina e a devoção ao Santo Patriarca como padroeiro universal da Igreja, visto que foi escolhido para desempenhar uma função muito singular no plano divino da nossa salvação: pela paternidade legal de São José é Jesus Cristo Messias descendente de David.

Do costume ordinário de celebrar os desposórios entre os membros de uma mesma estirpe, deduz-se que Maria pertencia à casa de David. Neste sentido falam também antigos Padres da Igreja. Assim Santo Inácio de Antioquia, Santo Ireneu, São Justino e Tertuliano, os quais fundamentam o seu testemunho numa tradição oral constante.

É de assinalar que São Mateus, para indicar o nascimento de Jesus, usa uma fórmula completamente diversa da aplicada aos demais personagens da genealogia. Com estas palavras o texto ensina positivamente a conceição virginal de Jesus, sem intervenção de varão.

18. São Mateus narra aqui como foi a conceição de Cristo (cfr Lc 1, 25-38): «(…) verdadeiramente celebramos e veneramos por Mãe de Deus (Maria), por ter dado à luz uma pessoa que é juntamente Deus e homem (…)» (Catecismo Romano, l, 4, 7).

Segundo as disposições da Lei de Moisés, aproxima­damente um ano antes do casamento realizavam-se os desposórios. Estes tinham praticamente já o valor jurídico do matrimônio. O casamento propriamente dito consistia, entre outras cerimônias, na condução solene e festiva da esposa para casa do esposo (cfr Dt 20,7).

Já desde os desposórios era preciso o libelo de repúdio, no caso de ruptura das relações.

Todo o relato do nascimento de Jesus ensina através do cumprimento da profecia de Isaías 7, 14 (que citará expres­samente nos versículos 22-23): 1.° Jesus é descendente de David pela via legal de José; 2.° Maria é a Virgem que dá à luz segundo a profecia; 3.° o caracter miraculoso da con­ceição do Menino sem intervenção de varão.

19. «José era efectivamente um homem corrente, em quem Deus confiou para operar coisas grandes. Soube viver, tal como o Senhor queria, todos e cada um dos aconteci­mentos que compuseram a sua vida. Por isso, a Escritura Santa louva José, afirmando que era justo. E, na linguagem hebraica, justo quer dizer piedoso, servidor irrepreensível de Deus, cumpridor da Vontade divina (cfr Gen 7,1; 23-32; Ez 18,5 ss; Pry 12, 10); outras vezes significa bom e caritativo com o próximo (cfr Tob 7,6; 9,6). Numa palavra, o justo é o que ama a Deus e demonstra esse amor, cumprindo os Seus mandamentos e orientando toda a sua vida ao serviço dos irmãos, os outros homens» (Cristo que passa, n.° 40).

José considerava santa a sua esposa não obstante os sinais da sua maternidade. Por isso se encontrava perante uma situação inexplicável para ele. Procurando precisamente actuar de acordo com a vontade de Deus sentia-se obrigado a repudiá-la, mas, com o fim de evitar a infâmia pública de Maria, decide deixá-la privadamente.

É admirável o silêncio de Maria. A sua entrega perfeita a Deus leva-a inclusivamente a não defender a sua honra e a sua inocência. Prefere que caia sobre Ela a suspeita e a infâmia, a manifestar o profundo mistério da Graça. Perante um facto inexplicável por razões humanas, abandona-se confiadamente no amor e providência de Deus.

Devemos contemplar a magnitude da prova a que Deus submeteu estas duas almas santas: José e Maria. Não nos pode causar estranheza que também nós sejamos submetidos por vezes, ao longo da vida, a provas duras; nelas temos de confiar em Deus e permanecer-Lhe fiéis, a exemplo de José e Maria.

20. Deus ilumina oportunamente o homem que actua com rectidão e confia no poder e sabedoria divina, perante situações que superam a compreensão da razão humana. O anjo recorda neste momento a José, ao chamar-lhe filho de David, que é o elo providencial que une Jesus com a estirpe de David, segundo a profecia messiânica de Natan (cfr 2 Sam 7, 12). Corno diz São João Crisóstomo: «Antes de mais recorda-lhe David, de quem tinha de vir Cristo, e não lhe consente estar perturbado desde o momento que, pelo nome do mais glorioso dos seus antepassados, lhe traz à memória a promessa feita a toda a sua linhagem » (Hom. sobre S. Mateus, 4).

«Jesus Cristo, único Senhor, nosso, Filho de Deus, quando tomou por nós carne humana no ventre da Virgem, foi con­cebido não por obra de varão, como os outros homens, mas, sobre toda a ordem natural, por virtude do Espírito Santo; de tal maneira que a mesma pessoa (do Verbo), permanecendo Deus, como o era desde a eternidade, se fizesse homem, o qual não era antes» (Catecismo Romano, 1,4,1).

21. Segundo a raiz hebraica, o nome de Jesus significa «salvador». Depois da Virgem Santa Maria, José é o primeiro homem que recebe esta declaração divina do facto da salvação, que já se estava a realizar.

«Jesus é o nome exclusivo do que é Deus e homem, o qual significa salvador, imposto a Cristo não casualmente nem por ditame ou disposição humana, mas por conselho e mandato de Deus.

(…) Os nomes profetizados (… o Admirável, o Conselheiro, Deus, o Forte, o Pai do século vindouro, o Príncipe da paz, cfr Is 9, 6), que se deviam dar por disposição divina ao Filho de Deus, resumem-se no nome de Jesus, porque, enquanto os outros se referem apenas sob algum aspecto à salvação que nos devia dar, este compendiou em si mesmo a realidade e a causa da salvação de todos os homens» (Catecismo Romano I, 3, 5 e 6).

20.03.2015 – Jo 7, 1-2.10.25-30

Depois disto, andava Jesus pela Galileia, pois não queria andar pela Judeia, porque os Judeus procuravam dar-Lhe a morte.

2Estava próxima a festa judaica dos Tabernáculos.

10Mas, depois de os Seus irmãos terem subido para irem à festa, subiu então Ele também, não publicamente, mas em segredo.

25Diziam então alguns dos de Jerusalém: Não é a Este que procuram dar a morte? 26Aí está Ele a falar abertamente, e nada Lhe dizem! Teriam, na verdade, os chefes reco­nhecido que Ele é o Messias? 27Mas Este sabemos donde é; o Messias, quando vier, ninguém sabe donde é. 28Entretanto Jesus, estando a ensinar no Templo, disse em voz alta: Não só Me conheceis, mas sabeis tam­bém donde Eu sou, se bem que Eu não tenha vindo de Mim mesmo; mas Aquele que Me enviou é verdadeiro. Esse que vós não conheceis. 29Eu é que O conheço, porque venho de junto d’Ele e foi Ele que Me enviou. 30Procuravam então prendê-Lo, mas ninguém Lhe deitou a mão, porque ainda não chegara a Sua hora.

Comentário

1-3. Os parentes mais próximos costumavam cha­mar-se entre os Judeus com o nome de «irmãos» (cfr as notas a Mt 12,46-47 e a Mc 6,1-3). Estes parentes de Jesus continuavam sem compreender a Sua doutrina e a Sua missão (cfr Mc 3,31); não obstante, como os milagres realizados na Galileia eram patentes (cfr Mt 15,32-39; Mc 8,1-10.22-26), sugerem-Lhe que Se manifeste publicamente em Jerusalém e em toda a Judéia. Com isso quiçá buscassem o triunfo temporal de Jesus, que podia afagar a vaidade familiar.

2. O nome desta festa evoca o tempo que os Hebreus passaram no deserto, habitando em tendas de campanha (cfr Lev 23,34-36). Durante os oito dias que durava a festa (cfr Neh 8,13-18), no começo do Outono, comemorava-se a protecção que os israelitas tinham recebido de Deus ao longo daqueles quarenta anos do Êxodo. Por coincidir com o termo das colheitas, estas festas chamavam-se também das Colheitas (cfr Ex 23,16).

10. Uma vez que não subia com a antecipação costu­mada, as primeiras caravanas que chegassem da Galileia anunciariam que Jesus não estaria presente naquela festi­vidade e, por conseguinte, os membros do Sinédrio desis­tiriam de tomar medidas contra Ele (cfr 7,1). Ao subir mais tarde, as autoridades judaicas não se atreveriam a causar-Lhe dano por temor a uma revolta popular (cfr Mt 26,5). Jesus, possivelmente em companhia dos Seus discípulos, chega a Jerusalém passando despercebido para o povo, «em segredo». Estando a festa já a meio, no quarto ou no quinto dia, começou a pregar no Templo (cfr 7,14).

27. Ao longo deste capítulo aparecem frequentemente as dúvidas e o desconcerto dos Judeus. Discutem entre eles se Jesus é o Messias, ou um profeta, ou um impostor (v. 12); não sabem donde Lhe vem a Sua sabedoria (v. 15), respondem-Lhe irritados (vv 19-20) e admiram-se da atitude do Sinédrio (v. 26). Não obstante, apesar dos sinais que viram (milagres, doutrina), resistem a crer que Jesus é o Messias. Possivelmente uns pensavam que era de Nazaré, filho de José e de Maria, o que não se acomodava com a ideia comum derivada do vaticínio de Isaías (Is 53,1-8), de que se desco­nheceria a origem do Messias, excepto a Sua estirpe davídica e o Seu lugar de nascimento, Belém (cfr Mt 2,5 que cita Mich 5,2; cfr Ioh 7,42). Jesus, na realidade, cumpria estas predições proféticas ainda que a maioria dos Judeus não estivessem bem informados, pois desconheciam o Seu nasci­mento virginal em Belém e a Sua ascendência davídica. Outros, pelo contrário, deviam conhecer melhor a estirpe davídica de Jesus, o Seu nascimento em Belém, etc., mas não queriam aceitar as Suas palavras, porque elas levavam con­sigo as exigências de uma conversão moral e mental a que se fechavam culpavelmente.

28-29. Jesus refere-Se com certa ironia ao conhecimento superficial que d’Ele têm aqueles judeus, baseado nas apa­rências: Ele afirma, não obstante, que procede do Pai que O enviou, a Quem só Ele conhece, precisamente por ser o Filho de Deus (cfr Ioh 1,18).

30. Os judeus entenderam que Jesus Se fazia igual a Deus e isto era considerado uma blasfêmia, que segundo a Lei devia ser castigada com a morte por lapidação (cfr Lev 24,15-16.23).

Não é a primeira vez que São João refere a hostilidade dos judeus (cfr Ioh 5,10) nem será a última (cfr Ioh 8,59; 10,3 1-33). Sublinha esta hostilidade porque assim se deu de facto e quiçá também para pôr em realce a liberdade de Jesus que, cumprindo a Vontade do Pai, Se entregará nas mãos dos Seus inimigos quando chegar a Sua «hora» (cfr Ioh 1 8,4-8). «O Senhor não faz referência à hora em que seria obrigado a morrer, mas à hora em que Se deixaria matar. Esperava o tempo em que tinha de morrer, como esperou também o tempo em que tinha de nascer» (In Ioann. Evang., 31,5).

21.03.2015 – Jo 7, 40-53

40Diziam então alguns dentre a multidão, que tinham ouvido estas palavras: Ele é na verdade o Profeta! 41Outros afirmavam: É o Messias! Outros, porém, diziam: Mas é da Galileia que vem o Messias? 42Não disse a Escritura que é da descendência de David e da povoação de Belém, de onde era David, que vem o Messias? 43Estabeleceu-se, pois, desa­cordo entre a multidão, por causa d’Ele. 44Alguns queriam prendê-Lo, mas ninguém Lhe deitou as mãos.

45Então, os guardas vieram ter com os Sumos Sacerdotes e os Fariseus, que lhes perguntaram: Porque não O trouxestes? 46Res­ponderam os guardas: Nunca ninguém falou como esse homem fala! 47Retorquiram-lhes os Fariseus: Também vós estais seduzidos? 48Porventura creu n’Ele algum dentre os chefes ou dentre os Fariseus? 49Mas essa multidão, que não conhece a Lei, são uns malditos!

50Disse-lhes Nicodemos, aquele que tinha ido anteriormente ter com Jesus e que era um deles: 5IAcaso julga a nossa Lei um homem, sem primeiro o ouvir e saber o que ele faz? 52Eles retorquiram-lhe: Também tu és da Galileia? Trata de indagar e hás-de ver que da Galileia não sai nenhum profeta. 53E foi cada qual para sua casa.

Comentário

40-43. O título «o Profeta» alude a Dt 18,18, que prediz a vinda nos últimos tempos de um profeta que todos deveriam escutar (cfr Ioh 1,21; 6,14); por sua vez, «o Cristo» («o Messias») era o título mais corrente no Antigo Testamento para designar o futuro Salvador enviado por Deus. O passo mostra uma vez mais a diversidade de opiniões acerca de Jesus. Muitos judeus ignoravam — sem se preocuparem de forma alguma por averiguar a verdade — que tinha nascido em Belém, a cidade de David, onde, segundo Miqueias (5,2) devia nascer o Messias. Tal ignorância culpável constituía neles uma desculpa para não O aceitar como o Cristo. Outros, porém, diante dos milagres de Jesus, compreendem que Ele deve ser o Messias. Também ao longo da história há diversas opiniões acerca de Jesus Cristo: alguns consideram-No exclusivamente como um homem extraordinário, sem que­rerem compreender que a Sua grandeza Lhe vem precisa­mente de ser o Filho de Deus.

46. Á verdade abriu caminho nos ânimos simples dos servidores do Sinédrio e, pelo contrário, chocou contra a obstinação dos fariseus. «Eis que os fariseus e os escribas não tiraram proveito nem ao contemplarem os milagres nem ao lerem as Escrituras; pelo contrário, os servidores, sem estas ajudas, foram captados por um só discurso, e os que foram prender Jesus voltaram presos pelo Seu poder. E não disseram: não pudemos por causa da gente; mas apregoaram a sabedoria de Cristo. Não é de admirar somente a sua prudência, porque não necessitaram de sinais, mas foram conquistados só pela doutrina; não disseram, com efeito: ‘Jamais homem algum fez tais milagres’, mas: ‘Jamais falou assim homem algum’, É de admirar também a sua con­vicção: vão aos fariseus, que se opunham a Cristo, e falam-lhes desta maneira» (Hom. sobre S. João, 9).

22.03.2015 – Jo 12, 20-33

20Havia alguns gregos entre os que tinham subido para fazerem a sua adoração por ocasião da festa. 21Foram eles ter com Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e fizeram-lhe este pedido: Senhor, nós queríamos ver Jesus. 22Filipe vai dize-lo a André, e Filipe e André vão, por sua vez, dize-lo a Jesus. 23 Então, Jesus toma a palavra e diz-lhes: Chegou a hora de ser glorificado o Filho do homem. 24Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica ele só. Mas, se morrer, dá muito fruto. 25Quem tem amor à sua vida perde-a; e quem odeia a sua vida neste mundo conser­vá-la-á para a vida eterna. 26Se alguém está ao Meu serviço, que Me siga; e onde Eu estou, lá estará também o Meu servidor. Se alguém está ao Meu serviço, o Pai há-de honrá-lo.

27Agora a Minha alma está perturbada. E que hei-de dizer: Pai, salva-Me desta hora? Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora! 28Pai, glorifica o Teu nome. Veio então do Céu uma voz: Glorifiquei-O e tornarei a glorificá-Lo.

29Ora a multidão, que estava presente e ouvira, dizia que tinha havido um trovão. Outros diziam: Foi um Anjo que Lhe falou. 30Jesus tomou a palavra e disse: Não foi por Minha causa que esta voz se fez ouvir, foi por vossa causa. 3IAgora é que é o julgamento deste mundo. Agora é que o Príncipe deste mundo vai ser lançado fora. 32E Eu, uma vez elevado da terra, hei-de atrair todos a Mim. 33Isto dizia Ele para indicar de que morte ia morrer.

Comentário

20-23. Esses «gregos» recorrem precisamente a Filipe, pois, segundo parece, este, que tem nome grego, devia en­tender a sua língua e podia-lhes servir de intérprete. Se isto é assim, estamos diante de um dos momentos transcendentes em que homens de uma cultura não judaica acorrem em busca de Cristo: são como as primícias da expansão da fé cristã no mundo helênico. Assim se compreende melhor a exclamação do Senhor no v. 23, acerca da Sua própria glorificação, que não só consiste em ser exaltado à direita do Pai (cfr Phil 2,6-11), mas também em atrair todos os homens a Si (cfr Ioh 12,32).

Também noutras ocasiões Jesus fala da «hora». Umas vezes refere-Se ao fim dos tempos (cfr Mc 13,32; Ioh 5,25); outras, como aqui, ao momento da Redenção através da Sua Morte e da Sua Glorificação (cfr Mc 14,41; Ioh 2,4; 4,23; 7,30; 8,20; 12,27; 13,1; 17,1).

24-25. Lemos aqui o aparente paradoxo entre a humi­lhação de Cristo e a Sua exaltação. Assim «foi conveniente que se manifestasse a exaltação da Sua glória de tal maneira, que estivesse unida à humildade da Sua paixão» (In Ioann. Evang., 51,8).

É a mesma ideia que ensina São Paulo ao dizer que Cristo Se humilhou e Se fez obediente até à morte e morte de Cruz, e que por isso Deus Pai O exaltou sobre toda a criatura (cfr Phil 2,8-9). Constitui uma lição e um estímulo para o cristão, que há-de ver em todo o sofrimento e contrariedade uma participação na Cruz de Cristo que nos redime e nos exalta. Para ser sobrenaturalmente eficaz, deve cada um morrer para si mesmo, esquecendo-se por completo da sua como­didade e do seu egoísmo. «Se o grão de trigo não morre, permanece infecundo. — Não queres ser grão de trigo, morrer pela mortificação e dar espigas bem gradas? — Que Jesus abençoe o teu trigal!» (Caminho, n° 199).

26. O Senhor falou do Seu sacrifício como condição para entrar na glória. E o que vale para o Mestre, também se aplica aos Seus discípulos (cfr Mt 10,24; Lc 6,40). Jesus Cristo quer que cada um de nós O sirva. É um mistério dos desígnios divinos que Ele — que é tudo, que tem tudo e não necessita de nada nem de ninguém — queira necessitar do nosso serviço para que a Sua doutrina e a salvação operada por Ele cheguem a todos os homens.

«Seguir Cristo: este é o segredo. Acompanhá-Lo tão de perto, que vivamos com Ele, como os primeiros Doze; tão de perto, que com Ele nos identifiquemos: Se não levantarmos obstáculos à graça, não tardaremos a afirmar que nos reves­timos de Nosso Senhor Jesus Cristo (cfr Rom XIII, 14) (…).

«Neste esforço por nos identificarmos com Cristo, costumo falar de quatro degraus: procurá-Lo, encontrá-Lo, conhecê-Lo, amá-Lo. Talvez vos pareça que estais na pri­meira etapa… Procurai-O com fome, procurai-O em vós mesmos com todas as vossas forças! Se o fazeis com este empenho, atrevo-me a garantir que já O encontrastes e que já começastes a conhecê-Lo e a amá-Lo e a ter a vossa conversa nos céus (cfr Phil III, 20)» (Amigos de Deus, nos 299-300).

27. Diante da evocação da morte que O espera, Jesus Cristo perturba-Se e dirige-Se ao Pai com uma oração muito parecida à de Getsemani (cfr Mt 26,39; Mc 14,36; Lc 22,42). Deste modo o Senhor, enquanto homem, busca filialmente apoio no amor e no poder de Seu Pai Deus, para Se fortalecer e ser fiel à Sua missão. É uma consolação para nós, tantas vezes débeis no momento difícil da provação; então, como Jesus, devemos apoiar-nos na força de Deus, «porque Tu és a minha fortaleza e o meu refúgio» (Ps 31,4).

28. A «glória» na Sagrada Escritura indica a santidade e o poder de Deus: a «glória de Deus» habitava no santuário do deserto e no Templo de Jerusalém (cfr Ex 40,35; 1Reg 8,11). A voz do Pai que diz «glorifíquei-O e tornarei a glorificá-Lo» é uma ratificação solene de queem Jesus Cristo habita a plenitude da divindade (cfr Cor 2,9; Ioh 1,14)e que, através da Sua Paixão, Morte e Ressurreição, se tornará patente na Sua própria Humanidade santíssima que Jesus é o Filho de Deus (cfr Mc 15,39).

O episódio evoca outras manifestações divinas: o Baptismo de Cristo (cfr Mt 3,13-17 e par.) e a Sua Transfiguração (Mt 17,1-5 e par.), onde Deus Pai também dá testemunho da Divindade de Jesus.

31-33. Jesus indica as consequências que se vão seguir da Sua Paixão e Morte. «É o julgamento deste mundo», isto é, dos que permanecerem servindo a Satanás, «príncipe deste mundo». Ainda que «mundo» seja o conjunto de homens que Cristo vem salvar (cfr Ioh 3,16-17), também significa com frequência tudo o que se opõe a Deus (veja-se a nota a Ioh 1, 10), e neste sentido se toma aqui. Ao ser pregado na Cruz, Jesus é o sinal supremo de contradição para todos os homens: os que O reconhecem como Filho de Deus sal­vam-se (cfr Lc 23,39-43); os que O rejeitam condenam-se. Cristo crucificado é a manifestação máxima do amor do Pai (cfr Ioh 3,14-16; Rom 8,32), o sinal posto no alto, prefigurado pela serpente de bronze levantada por Moisés no deserto (cfr Ioh 3,14; Num 21,9).

Assim pois, o Senhor desde a Cruz é o Juiz universal que condenará o mundo (cfr Ioh 3,17) e o demônio (cfr Ioh 16,11); na realidade eles mesmos provocam a sua condenação ao não aceitarem nem crerem no amor divino. O Senhor desde a Cruz atrai todos os homens, pois todos podem contemplá-Lo crucificado.

«Cristo, Senhor Nosso, foi crucificado e, do alto da Cruz, redimiu o mundo, restabelecendo a paz entre Deus e os homens. Jesus Cristo lembra a todos: et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum (Ioh XII, 32), se vós Me puserdes no cume de todas as actividades da Terra, cum­prindo o dever de cada momento, sendo Meu testemunho naquilo que parece grande e naquilo que parece pequeno, omnia traham ad meipsum, tudo atrairei a Mim. O Meu reino entre vós será uma realidade!» (Cristo que passa, n° 183). Cada cristão seguindo Cristo, há-de ser uma bandeira has­teada, uma luz colocada no candeeiro: bem unido pela oração e mortificação à Cruz, em cada momento e circuns­tância da vida, há-de manifestar aos homens o amor salvador de Deus Pai.

«Cristo, com a Sua Encarnação, com a Sua vida de trabalho em Nazaré, com a Sua pregação e os Seus milagres por terras da Judeia e da Galileia, com a Sua morte na Cruz, com a Sua Ressurreição, é o centro da Criação. Primogênito e Senhor de toda a criatura.

«A nossa missão de cristãos é proclamar essa Realeza de Cristo; anunciá-la com a nossa palavra e com as nossas obras. O Senhor quer os Seus em todas as encruzilhadas da Terra. A alguns, chama-os ao deserto, desentendidos das inquietações da sociedade humana, para recordarem aos outros homens, com o seu testemunho, que Deus existe. Encomenda a outros o ministério sacerdotal. A grande maioria, o Senhor quere-a no mundo, no meio das ocupações terrenas. Estes cristãos, portanto, devem levar Cristo a todos os ambientes em que se desenvolve o trabalho humano: à fábrica, ao laboratório, ao trabalho do campo, à oficina do artesão, às ruas das grandes cidades e às veredas da monta­nha» (Cristo que passa, n.° 105).

32. «Hei-de atrair todos a Mim»: A Vulgata Latina, se­guindo importantes manuscritos gregos, traduz omnia, «tudo», «todas as coisas». A Neo-vulgata, apoiando-se noutros manus­critos também importantes e mais numerosos que os ante­riores, optou por omnes, «todos». As razões para escolher uma ou outra variante não são definitivas; mais ainda, teologicamente ambas são certas e não se excluem, pois Cristo atrai para Si toda a criação, mas especialmente o homem (cfr Rom 8,18-23).

23.03.2015 – Jo 8, 1-11

Jesus foi para o monte das Oliveiras. 2De madrugada, apareceu outra vez no Templo, e todo o povo ia ter com Ele; sentou-Se então e pôs-Se a instruí-los.

3 Entretanto, os Escribas e os Fariseus trazem-Lhe uma mulher apanhada em adul­tério e, depois de a colocarem no meio, 4dizem-Lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante a cometer adultério. 5Ora Moisés, na Lei, mandou-nos apedrejar tais mulheres. E Tu que dizes? 6Isto diziam eles para Lhe armarem uma cilada, a fim de terem de que O acusar. Mas Jesus, inclinando-Se, pôs-Se a escrever no chão com o dedo.

7Como persistissem em interrogá-Lo, ergueu-Se e disse-lhes: Aquele de vós que estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra! 8E, inclinando-Se novamente, recomeçou a escrever no chão. 9Eles, porém, ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus com a mulher, que continuava ali no meio. 10Jesus ergueu-Se e disse-lhe: Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? 11Ela respondeu: Ninguém, Senhor. Nem Eu te condeno — volveu-lhe Jesus. — Vai e dora­vante não tornes a pecar.

Comentário

1-11. Este episódio falta em bastantes códices antigos, mas conservava-o a Vulgata quando o Magistério da Igreja definiu o Canon dos livros sagrados no Concilio de Trento. Portanto, a canonicidade e a inspiração deste texto estão fora de toda a dúvida. A Igreja utilizou-o e continua a utilizá-lo na liturgia. A recente edição da Neo-vulgata inclui-o neste mesmo lugar.

Santo Agostinho explicava já as dúvidas acerca deste passo dizendo que a grande misericórdia de Jesus manifes­tada com esta mulher parecia a alguns espíritos, exageradamente rigoristas, quê poderia dar azo a uma relaxação das exigências morais. Daqui que muitos copistas o suprimissem dos seus manuscritos (cfr De coniugiis adulterínis, 2,6).

Ao comentar o episódio da mulher adúltera, Frei Luís de Granada escreve, entre outras, esta consideração geral acerca da misericórdia de Jesus: «Tais, pois, convém que sejam, meu irmão, as tuas entranhas, tais as tuas obras e as tuas palavras, se queres ser uma formosíssima reprodução deste Senhor. E por isto não se contenta o Apóstolo com mandar-nos que sejamos misericordiosos, mas, diz, que nos vistamos, como filhos de Deus, de entranhas de misericórdia (cfr Col 3,12). Vê, pois, como estaria o mundo se todos os homens trouxessem este vestido.

«Tudo isto se disse para que, por estas obras tão assina­ladas, se conheça algo daquele grande abismo de bondade e de misericórdia do nosso Salvador, a qual nestas obras tão claramente resplandece, pois (…) não podemos nesta vida conhecer Deus por Si, mas pelas Suas obras (…). Mas aqui também convém avisar que nunca de tal maneira nos transportemos em contemplar a divina misericórdia, que não nos recordemos da justiça; nem de tal maneira contem­plemos a justiça, que não nos recordemos da misericórdia; para que nem a esperança careça de temor, nem o temor da esperança» (Vida de Jesus Cristo, 13, 4.°).

1. Sabemos que Nosso Senhor Se retirou várias vezes durante a noite a orar no monte das Oliveiras (cfr Ioh 18,2; Lc 22,39), situado a Este de Jerusalém. O vale da torrente Cédron (Ioh 18,1) separa-o da colina onde estava edificado o Templo. Era desde tempos antigos lugar de oração: ali foi David adorar a Deus no duro transe da revolta de Absalão (2 Sam 15,32) e ali o profeta Ezequiel contemplou a glória de Yahwéh que entrava no novo Templo (Ez 43,1-4). Ao pé do monte encontrava-se um horto, cujo nome era Getsemani, ou «lugar de azeite», uma quinta fechada com plantação de oliveiras. A tradição cristã rodeou o lugar de respeito e conservou-o como sítio de oração. Em fins do século IV construiu-se uma igreja, sobre cujos restos se edificou a actual. Perduram ainda algumas poucas oliveiras milenárias que podem muito bem ser rebentos dos tempos do Senhor.

6. A pergunta dos escribas e fariseus esconde uma insídia: como o Senhor Se tinha manifestado repetidas vezes compreensivo com os que eram considerados pecadores, recorrem agora a Ele com este caso para ver se também Se mostra indulgente, e assim poderem acusá-Lo de não respei­tar um dos preceitos terminantes da Lei (cfr Lev 20,10).

7. A resposta de Jesus alude ao modo de praticar a lapidação entre os Judeus: as testemunhas do delito tinham que atirar as primeiras pedras, depois seguia-se a comuni­dade, como para apagar colectivamente o opróbrio que recaía sobre o povo (cfr Dt 17,7). A questão, que lhe propõem de um ponto de vista legal, Jesus eleva-a ao plano moral — que sustenta e justifica o legal — interpelando a cons­ciência de cada um. Não viola a Lei, diz Santo Agostinho, e ao mesmo tempo não quer que se perca o que Ele estava a buscar, porque tinha vindo para salvar o que estava perdido: «Vede que resposta tão cheia de justiça, de mansidão e de verdade. Oh verdadeira resposta da Sabedoria! Ouviste-o: Cumpra-se a Lei, que seja apedrejada a adúltera. Mas, como podem cumprir a Lei e castigar aquela mulher uns peca­dores? Veja-se cada um a si mesmo, entre no seu interior e ponha-se em presença do tribunal do seu coração e da sua consciência, e ver-se-á obrigado a confessar-se pecador. Sofra o castigo aquela pecadora, porém não por mão de pecadores; execute-se a Lei, mas não pelos seus transgres­sores» (In Ioann. Evang., 33,5).

11. «Apenas dois ficam ali: a miserável e a Misericórdia. E o Senhor, depois de ter cravado o dardo da Sua justiça no coração dos judeus, nem Se digna olhar sequer como vão desaparecendo, mas afasta deles a Sua vista e volta outra vez a escrever com o dedo na terra. Quando se afastaram todos e ficou só a mulher, levantou os olhos e fixou-os nela. Já ouvimos a voz da justiça; ouçamos agora também a voz da mansidão. Que aterrada deve ter ficado aquela mulher quando ouviu dizer ao Senhor: ‘Aquele de vós que estiver sem pecado, que atire primeiro a pedra’, porque temia ser castigada por Aquele em que não podia achar-se pecado algum. Mas Aquele que tinha afastado de Si os Seus inimigos com as palavras da justiça, olhando-a com olhos de miseri­córdia, pergunta-lhe: Ninguém te condenou? Responde ela: Ninguém, Senhor. E Ele: Nem Eu te condeno; Eu próprio, de quem talvez tenhas temido ser castigada, porque em Mim não achaste pecado algum. ‘Também Eu não te condeno’. Senhor, que é isto? Favoreces Tu os pecadores? Claro que não. Vê o que se segue: Vai e desde agora não peques mais. Portanto, o Senhor deu sentença de condenação contra o pecado, mas não contra a mulher» (In Ioann. Evang., 33,5-6). Jesus, que é o Justo, não condena; ao contrário, aqueles, que são pecadores, ditam sentença de morte. A misericórdia infinita de Deus há-de mover-nos a ter sempre compaixão daqueles que cometem pecado, porque também nós somos pecadores e necessitamos do perdão de Deus.

24.03.2015 – Jo 8, 21-30

21Disse-lhes ainda: Eu vou-Me embora; haveis de procurar-Me, mas morrereis no vosso pecado. Vós não podeis vir para onde Eu vou. 22Ele foi-lhes dizendo: Vós sois cá de baixo, Eu sou lá de cima; vós sois deste mundo, Eu não sou deste mundo. 24Ora Eu disse-vos: «Morrereis nos vossos pecados, visto que, se não acreditardes que Eu sou, haveis de morrer nos vossos pecados».

25Perguntaram-Lhe então: Tu quem és? Disse-lhes Jesus: Precisamente aquilo que vos digo! 26Tenho, a vosso respeito, muito que dizer e que julgar. Mas Aquele que Me enviou é verídico e Eu, o que Lhe ouvi, ao mundo o comunico. 27Eles não perceberam que lhes falava do Pai. 28Disse então Jesus: Quando elevardes o Filho do homem, então sabereis que Eu sou e que por Mim nada faço, mas conforme o Pai Me ensinou é que falo. 29Aquele que Me enviou está comigo: não Me deixou só, porque Eu sempre faço o que é do Seu agrado. 30Enquanto assim falava, muitos acreditaram n’Èle.

Comentário

21-24. Ao começar o Seu ministério público, Jesus apresentou-Se com os traços próprios do Messias prometido; alguns reconhecem-No como tal e aderem a Ele (cfr Ioh 1,12-13; 4_42; 6,69; 7,41); mas as autoridades hebreias, apesar de esperarem a vinda do Messias (cfr Ioh 1,19 ss.), persistem na sua atitude de repulsa perante Jesus. Daí à advertência que agora lhes dirige: Ele vai aonde eles não podem ir, isto é, irá para o Céu donde procede (cfr Ioh 6,41 ss.) e eles continuarão a esperar o Messias anunciado pelos profetas; mas nem encontrarão o Messias, porque o buscam fora de Jesus, nem agora O podem seguir, porque não creem n’Ele. Vós sois deste mundo — vem o Senhor dizer-lhes —, não por estardes na terra mas por viverdes sob o influxo do príncipe deste mundo (cfr Ioh 12,31; 14,30; 16,11), por serdes vassalos e realizardes as suas obras (cfr 15,19); por isto morrereis nos vossos pecados. «Todos nascemos com pecado — comenta Santo Agostinho —; todos durante a vida acrescentamos outros ao pecado de origem, e temo-nos feito mais do mundo do que éramos quando nascemos dos nossos pais. Onde estaríamos se aquele que não tem sombra de pecado não tivesse vindo para destruir todo o pecado? Os judeus, por não crerem n’Ele, foram justamente sentenciados: Morrereis nos vossos pecados» (In Ioann. Evang., 38,6).

A salvação que Cristo traz será aplicada a todos os que creem na Sua divindade. A divindade é declarada quando Jesus diz «Eu sou», porque esta expressão, repetida noutras ocasiões (cfr Ioh 8,28; 13,19), estava reservada a Yahwéh no Antigo Testamento (cfr Dt 32,39; Is 43,10-11), onde Deus, ao revelar o Seu Nome, e com ele a Sua essência, diz a Moisés: «Eu sou o que sou» (Ex 3,14). Com esta expressão tão profunda Deus diz de Si mesmo que é o Ser supremo em sentido absoluto e pleno, que não depende de nenhum outro ser, e do qual todos dependem no seu ser e no seu existir. Assim, pois, Jesus ao dizer de Si mesmo «Eu sou» revela que é Deus.

25. Pouco antes Jesus tinha falado da Sua origem celeste e da Sua natureza divina (cfr vv. 23-24); mas os judeus resistem a aceitar essa revelação; por isso buscam agora uma declaração ainda mais explícita: «Tu quem és?». A resposta do Senhor pode entender-se de diversas maneiras, pois o texto grego admite dois sentidos: 1) o Senhor confirma o que tinha proclamado imediatamente antes (cfr vv. 23-24) ou ao longo do Seu ensino em Jerusalém, e assim pode tradu­zir-se «absolutamente», ou então, «em primeiro lugar o que vos estou a dizer». Esta é a interpretação da Neo-vulgata. 2) Jesus indica que Ele é o «Princípio», termo que São João utiliza também no Apocalipse para designar o Verbo, causa de toda a criatura (Apc 3,14; cfr Apc 1,8). Com isso exprime Jesus a Sua origem divina: esta é a interpretação da Vulgata. Em qualquer dos casos. Cristo manifesta de novo a Sua divin­dade, reafirmando o que disse antes, mas sem voltar a repetir as palavras que já escutaram.

Esta mesma pergunta dos judeus põe-se a muitos homens do nosso tempo: « Quem era Jesus? A nossa fé exulta e grita: é Ele, é Ele, o Filho de Deus feito homem; o Messias que esperávamos: é o Salvador do mundo, é, finalmente, o Mestre da nossa vida; é o Pastor que conduz os homens aos seus pastos no tempo, aos seus destinos mais além do tempo; é a alegria do mundo; a imagem do Deus invisível; o Caminho, a Verdade e a Vida; é o Amigo íntimo, o que nos conhece inclusivamente de longe e penetra os nossos pensa­mentos; é o que nos pode perdoar, consolar, curar, inclusiva­mente ressuscitar; e é Aquele que voltará, juiz de todos e de cada um, na plenitude da Sua glória e da nossa felicidade eterna» (Paulo VI, Audiência geral, ll-XII-1974.

26-27. «Aquele que Me enviou»: Expressão que se en­contra muito frequentemente no Evangelho de São João para se referir a Deus Pai (cfr 5,37; 6,44; 7,28; 8,16).

Os judeus que escutavam Jesus não compreendiam a quem Se estava a referir ao dizer «Aquele que Me enviou»; mas São João explica, ao narrar este episódio, que Cristo fala de Deus Pai, de Quem procede.

«Lhes falava do Pai»: Esta é a leitura da maioria dos códices gregos, entre eles os mais importantes. Outros códices gregos e algumas versões, como a Vulgata, leem «chamava Deus a Seu Pai».

« O que Lhe ou vi»: Jesus tem um conhecimento conatural do Pai, e segundo este conhecimento fala aos homens; não conhece por revelação ou por inspiração como os profetas ou os hagiógrafos, mas de um modo infinitamente superior. Por isso podia dizer que ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho queira revelá-lo (cfr Mt 11,27).

Acerca da ciência que Jesus Cristo tinha durante a Sua vida na terra veja-se a nota a Lc 2,52.

28. O Senhor refere-Se à Sua Paixão e Morte: «E Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim. Dizia isto assinalando de que morte ia morrer» (Ioh 12,32-33). Completando os Sinópticos e as Cartas de São Paulo, o quarto Evangelho apresenta a Cruz, sobretudo como um trono realem que Cristo «posto no alto» oferece a todos os homens os frutos da salvação (cfr Ioh 3,14-15; cfr também Num 21,9 ss.; Sap 16,6).

Jesus diz que, chegado aquele momento, os judeus conheceriam quem era Ele e a estreita união que tinha com o Pai, porque muitos deles descobririam, mercê da Sua Morte seguida da Ressurreição, que era o Messias, o Filho de Deus (cfr Mc 15,39; Lc 23,47 s.). Depois da vinda do Espírito Santo serão milhares as pessoas que crerão n’Ele (cfr Act 1,41; 4,4).

25.03.2015 – Lc 1, 26-38

26Ao sexto mês, foi o Anjo Gabriel enviado, Anunciação da parte de Deus, a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, 27a uma virgem que era noiva dum homem da casa de David, cha­mado José, e o nome da virgem era Maria. 28Ao entrar para junto dela, disse o Anjo: Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo. 29A estas palavras, ela perturbou-se ficou a pensar que saudação seria aquela. 30Disse-lhe o Anjo: Não tenhas receio, Maria, pois achaste graça diante de Deus. 3lHás-de conceber e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. 32Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo; dar-Lhe-á o Senhor Deus o trono de Seu pai David, 33reinará eternamente na casa de Jacob e o Seu Reinado não terá fim.

34Disse Maria ao Anjo: Como será isso, se eu não conheço homem? 35Disse-lhe o Anjo, em resposta: Virá sobre ti o Espírito Santo, e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a Sua sombra. Por isso mesmo é que o Santo que vai nascer há-de chamar-Se Filho de Deus. 36E também Isabel, tua parenta, concebeu um filho, na sua velhice, e é este o sexto mês dessa que chamavam estéril, 37porque, da parte de Deus, nada é impossível. 38Maria disse então: Eis a escrava do Senhor: seja-me feito segundo a tua palavra. E retirou-se o Anjo de junto dela.

Comentário

26-38. Aqui contemplamos Nossa Senhora que, «enri­quecida, desde o primeiro instante da sua conceição, com os esplendores duma santidade singular, a Virgem de Nazaré é saudada pelo Anjo, da parte de Deus, como cheia de graça (cfr Lc 1,28); e responde ao mensageiro celeste: Eis a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1 ,38). Deste modo, Maria, filha de Adão, dando o seu consentimento à palavra divina, tornou-se Mãe de Jesus e, não retida por qualquer pecado, abraçou de todo o coração o desígnio salvador de Deus, consagrou-se totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho, subordinada a Ele e juntamente com Ele, servindo pela graça de Deus omnipotente o mistério da Redenção. Por isso, consideram com razão os santos Padres que Maria não foi utilizada por Deus como instrumento meramente passivo, mas que cooperou livremente, pela sua fé e obediência, na salvação dos homens» (Lumen gentium, n. 56).

A Anunciação a Maria e a Encarnação do Verbo é o facto mais maravilhoso, o mistério mais entranhável das relações de Deus com os homens e o acontecimento mais transcendente da História da humanidade. Que Deus Se faça Homem e para sempre! Até onde chegou a bondade, a misericórdia e o amor de Deus por nós, por todos nós! E, não obstante, no dia em que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade assu­miu a débil natureza humana das entranhas puríssimas de Maria Santíssima, nada extraordinário acontecia, aparentemente, sobre a face da terra.

Com grande simplicidade narra São Lucas o magno acontecimento. Com quanta atenção, reverência e amor temos de ler estas palavras do Evangelho, rezar piedosamente o Angelus cada dia, seguindo a divulgada devoção cristã, e contemplar o primeiro mistério gozoso do santo Rosário.

27. Deus quis nascer de uma mãe virgem. Assim o tinha anunciado séculos antes por meio do profeta Isaías (cfr Is 14; Mt 1,22-23). Deus, «desde toda a eternidade, esco­lheu-A e indicou-A como Mãe para que o Seu Unigênito Filho tomasse carne e nascesse d’Ela na plenitude ditosa dos tempos; e em tal grau A amou por cima de todas as criaturas, que só n’Ela se comprazeu com assinaladíssima complacência» (Ineffabilis Deus). Este privilégio de ser virgem e mãe ao mesmo tempo, concedido a Nossa Senhora, é um dom divino, admirável e singular. Deus «engrandeceu tanto a Mãe na concepção e no nascimento do Filho, que Lhe deu fecundidade e A conservou em perpétua virgindade» (Catecismo Romano, 1,4,8). Paulo VI recordava-nos novamente esta verdade de fé: «Cremos que a bem-aventurada Maria, que permaneceu sempre Virgem, foi a Mãe do Verbo encar­nado, Deus e Salvador nosso Jesus Cristo» (Credo do Povo de Deus, n.° 14).

Ainda que se tenham proposto muitos significados do nome de Maria, os autores de maior relevância parecem estar de acordo em que Maria significa Senhora. Não obstante, a riqueza que contém o nome de Maria não se esgota com um só significado.

28. «Salve!»: Literalmente o texto grego diz: alegra-te! É claro que se trata de uma alegria totalmente singular pela notícia que Lhe vai comunicar a seguir.

«Cheia de graça»: O Arcanjo manifesta a dignidade e a honra de Maria com esta saudação desusada. Os Padres e Doutores da Igreja «ensinaram que com esta singular e solene saudação, jamais ouvida, se manifestava que a Mãe de Deus era assento de todas as graças divinas e que estava adornada de todos os carismas do Espírito Santo», pelo que «jamais esteve sujeita a maldição», isto é, esteve imune de todo o pecado. Estas palavras do arcanjo constituem um dos textos em que se revela o dogma da Imaculada Conceição de Maria (cfr Ineffabilis Deus; Credo do Povo de Deus, n.° 14).

«O Senhor está contigo»: Estas palavras não têm um mero sentido deprecatório (o Senhor esteja contigo), mas afirmativo (o Senhor está contigo), e em relação muito (estreita com a Encarnação. Santo Agostinho glosa a frase «o Senhor está contigo» pondo na boca do arcanjo estas palavras: «Mais que comigo, Ele está no teu coração, forma-Se no eu ventre, enche a tua alma, está no teu seio» (Sermo de Nativitate Domini, 4).

Alguns importantes manuscritos gregos e versões antigas acrescentam no fim: «Bendita tu entre as mulheres»: Deus exaltá-La-ia assim sobre todas as mulheres. Mais excelente que Sara, Ana, Débora, Raquel, Judit, etc., pelo facto de que só Ela tem a suprema dignidade de ter sido escolhida para ser Mãe de Deus.

29-30. Perturbou-se Nossa Senhora pela presença do Arcanjo e pela confusão que produzem nas pessoas verdadeiramente humildes os louvores dirigidos a elas.

30. A Anunciação é o momento em que Nossa Senhora conhece com clareza a vocação a que Deus A tinha destinado desde sempre. Quando o Arcanjo A tranquiliza e Lhe diz «não temas, Maria», está a ajudá-La a superar esse temor inicial que, ordinariamente, se apresenta em toda a vocação. O facto de que isto tenha acontecido à Santíssima Virgem indica-nos que não há nisso nem sequer imperfeição: é uma reacção natural diante da grandeza do sobrenatural. Imperfeição seria não o superar, ou não nos deixarmos aconselhar por aqueles que, como São Gabriel e Nossa Senhora, podem ajudar-nos.

31-33. O arcanjo Gabriel comunica à Santíssima Virgem a sua maternidade divina, recordando as palavras de Isaias que anunciavam o nascimento virginal do Messias e que agora se cumprem em Maria Santíssima (cfr Mt 1 ,22-23; Is 7,14).

Revela-se que o Menino será «grande»: a grandeza vem-Lhe da Sua natureza divina, porque é Deus, e depois da Encarnação não deixa de sê-lo, mas assume a pequenez da humanidade. Revela-se também que Jesus será o Rei da dinastia de David, enviado por Deus segundo as promessas de Salvação; que o Seu Reino «não terá fim»; porque a Sua humanidade permanecerá para sempre indissoluvelmente unida à Sua divindade; que «chamar-se-á Filho do Altís­simo»: indica ser realmente Filho do Altíssimo e ser reconhe­cido publicamente como tal, isto é, o Menino será o Filho de Deus.

No anúncio do Arcanjo evocam-se, pois, as antigas pro­fecias que anunciavam estas prerrogativas. Maria, que conhecia as Escrituras Santas, entendeu claramente que ia ser Mãe de Deus.

34-38. O Papa João Paulo II comentava assim este passo: «Virgo fidelis, Virgem fiel. Que significa esta fidelidade de Maria? Quais são as dimensões dessa fidelidade? A primeira dimensão chama-se busca. Maria foi fiel, antes de mais, quando com amor se pôs a buscar o sentido profundo do desígnio de Deus n’Ela e para o mundo. ‘Quomodo fiet? Como acontecerá isto?’, perguntava Ela ao anjo da Anun­ciação (…). Não haverá fidelidade se não houver na raiz esta ardente, paciente e generosa busca (…).

«A segunda dimensão da fidelidade chama-se acolhimento, aceitação. O quomodo fiet transforma-se, nos lábios de Maria, em um fiat. Que se faça, estou pronta, aceito: este é o momento crucial da fidelidade, momento em que o homem percebe que jamais compreenderá totalmente o como; que no desígnio de Deus mais zonas de mistério que de evidência; que, por mais que faça, jamais conseguirá captar tudo (…).

«Coerência é a terceira dimensão da fidelidade. Viver de acordo com o que se crê. Ajustar a própria vida ao objecto da própria adesão. Aceitar incompreensões, perseguições antes de permitir rupturas entre o que se vive e o que se crê: esta é a coerência (…).

«Mas toda a fidelidade deve passar pela prova mais exigente: a da duração. Por isso a quarta dimensão da fidelidade é a constância. É fácil de ser coerente por um dia ou por alguns dias. Difícil e importante é ser coerente toda a vida. É fácil de ser coerente na hora da exaltação, difícil sê-lo na hora da tribulação. E só pode chamar-se fidelidade uma coerência que dura ao longo de toda a vida. O fiat de Maria na Anunciação encontra a sua plenitude no fiat silencioso que repete aos pés da cruz» (Homilia Catedral México).

34. A fé de Maria nas palavras do Arcanjo foi absoluta; não duvida como duvidou Zacarias (cfr 1,18). A pergunta da Santíssima Virgem «como será isso» exprime a sua prontidão para cumprir a Vontade divina diante de uma situação que parece à primeira vista contraditória: por um lado Ela tinha a certeza de que Deus lhe pedia para con­servar a virgindade; por outro lado, também da parte de Deus, é-lhe anunciado que vai ser mãe. As palavras imediatas do arcanjo declaram o mistério do desígnio divino e o que parecia impossível, segundo as leis da natureza, explica-se por uma singularíssima intervenção de Deus.

O propósito de Maria de permanecer virgem foi certa­mente algo singular, que interrompia o modo ordinário de proceder dos justos do Antigo Testamento, no qual, como expõe Santo Agostinho, «atendendo de modo particularíssimo à propagação e ao crescimento do Povo de Deus, que era o que tinha de profetizar e donde havia de nascer o Prín­cipe e Salvador do mundo, os santos tiveram de usar do bem do matrimônio» (De bono matrimonii, 9,9). Houve, porém, no Antigo Testamento alguns homens que por desígnio de Deus permaneceram célibes, como Jeremias, Elias, Eliseu e João Baptista. A Virgem Santíssima, inspirada ‘de modo muito particular pelo Espírito Santo para viver plenamente a virgindade, é já uma primícia do Novo Testamento, no qual a excelência da virgindade sobre o matrimônio adqui­rirá todo o seu valor, sem diminuir a santidade da união conjugal, que é elevada à dignidade de sacramento (cfr Gaudium et spes, n. 48).

35. A «sombra» é um símbolo da presença de Deus. Quando Israel caminhava pelo deserto, a glória de Deus enchia o Tabernáculo e uma nuvem cobria a Arca da Aliança (Ex 40,34-36). De modo semelhante quando Deus entregou a Moisés as tábuas da Lei uma nuvem cobria a montanha do Sinai (Ex 24,15-16), e também na Transfiguração de Jesus se ouve a voz de Deus Pai no meio de uma nuvem (Lc 9,35). No momento da Encarnação o poder de Deus enroupa com a Sua sombra Nossa Senhora. É a expressão da acção omnipotente de Deus. O Espírito de Deus — que, segundo o relato do Gênesis (1 ,2), pairava sobre as águas dando vida às coisas — desce agora sobre Maria. E o fruto do seu ventre será obra do Espírito Santo. A Virgem Maria, que foi concebida sem mancha de pecado (cfr Ineffabilis Deus), fica depois da Encarnação constituída em novo Tabernáculo de Deus. Este é o Mistério que recordamos todos os dias na recitação do Ángelus.

38. Uma vez conhecido o desígnio divino, Nossa Senhora entrega-se à Vontade de Deus com obediência pronta e sem reservas. Dá-se conta da desproporção entre o que vai ser — Mãe de Deus — e o que é — uma mulher —. Não obstante, Deus o quer e nada é impossível para Ele, e por isto ninguém é capaz de pôr dificuldades ao desígnio divino. Daí que, juntando-se em Maria a humildade e a obediência, pronun­ciará o sim ao chamamento de Deus com essa resposta perfeita: «Eis a escrava do Senhor, seja-me feito segundo a tua palavra».

«Ao encanto destas palavras virginais, o Verbo se fez carne» (Santo Rosário, primeiro mistério gozoso). Das purís­simas entranhas da Santíssima Virgem, Deus formou um corpo, criou do nada uma alma, e a este corpo e alma uniu-Se o Filho de Deus; desta sorte o que antes era apenas Deus, sem deixar de o ser, ficou feito homem. Maria já é Mãe de Deus. Esta verdade é um dogma da nossa santa fé definido no Concilio de Éfeso (ano 431). Nesse mesmo instante começa a ser também Mãe espiritual de todos os homens. O que um dia ouvirá de lábios de seu Filho moribundo, «eis aí o teu filho (…), eis aí a tua mãe» (Ioh 19,26-27), não será senão a proclamação do que silenciosamente tinha acontecido em Nazaré. Assim, «com o seu fiat generoso converteu-se, por obra do Espírito, em Mãe de Deus e também em verdadeira Mãe dos vivos, e converteu-se também, ao acolher no seu seio o único Mediador, em verdadeira Arca da Aliança e verdadeiro Templo de Deus» (Marialis cultus, n. 6).

O Evangelho faz-nos contemplar a Virgem Santíssima como exemplo perfeito de pureza («não conheço homem»); de humildade («eis a escrava do Senhor»); de candura e simplicidade («como será isso»); de obediência e de fé viva («seja-me feito segundo a tua palavra»). «Procuremos apren­der, seguindo também o seu exemplo de obediência a Deus, numa delicada combinação de submissão e de fidalguia. Em Maria, nada existe da atitude das virgens néscias, que obe­decem, sim, mas como insensatas. Nossa Senhora ouve com atenção o que Deus quer, pondera aquilo que não entende, pergunta o que não sabe. Imediatamente a seguir, entrega-se sem reservas ao cumprimento da vontade divina: eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a Vossa palavra (Lc 1, 38). Vedes esta maravilha? Santa Maria, mestra de toda a nossa conduta, ensina-nos agora que a obediência a Deus não é servilismo, não subjuga a consciência, pois nos move interiormente a descobrir a liberdade dos filhos de Deus (cfr Rom VIII, 21)» (Cristo que passa, n.° 173).

26.03.2015 – Jo 8, 51-59

51Em verdade, em verdade vos digo: Se alguém guardar a Minha palavra, nunca mais experimentará a morte. 52Disseram-Lhe os Judeus: Agora sabemos nós que estás possesso do Demônio. Abraão morreu, os profetas também, e Tu dizes: «Se alguém guardar a Minha palavra, nunca mais experi­mentará a morte». 53Serás Tu maior que o nosso pai Abraão, que morreu? E os profetas morreram também! Quem pretendes ser? 54Jesus replicou: Se Eu Me glorificar a Mim mesmo, nada será a Minha glória. É Meu Pai que Me glorifica, Ele de quem dizeis: «É o nosso Deus». 55Vós, porém, não O conheceis; Eu é que O conheço. E se dissesse que O não conhecia, seria, como vós, mentiroso. Mas Eu conheço-O e guardo a Sua palavra. 56O vosso pai Abraão exultou com a ideia de ver o Meu dia; viu-o e rejubilou. 57Disseram-Lhe então os Judeus: Ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão? 58Retorquiu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: Antes de Abraão existir, Eu sou! 59Então apanharam pedras para Lhas atirarem. Mas Jesus ocultou-Se e saiu do Templo.

Comentário

51-53. «Nunca mais experimentará a morte»: O Senhor promete a vida eterna àqueles que acolherem o Seu ensina­mento e permanecerem fiéis a ele.

O pecado, como ensina o quarto Evangelho, é morte da alma; e a graça santificante, vida (cfr Ioh 1,4.13; 3,15.16.36; etc.). Pela graça temos o começo da vida eterna, o penhor da Glória que alcançaremos para além desta vida terrena e que é a Vida verdadeira. Os judeus, obcecados na sua hostilidade, não querem escutar as palavras do Senhor e por isso não O entendem.

55. O conhecimento de que fala o Senhor implica algo mais que um mero saber ou compreender. Deste conhecimento já se fala no Antigo Testamento, onde o verbo «conhe­cer» denota amor, fidelidade, entrega generosa. O amor a Deus é consequência do conhecimento certo que d’Ele tenhamos e, ao mesmo tempo, conhecemos melhor a Deus à medida que O amamos mais.

Jesus, cuja Humanidade Santíssima estava unida inti­mamente — ainda que sem confusão — com a Sua Divin­dade na única Pessoa do Verbo, não podia deixar de afirmar o Seu conhecimento singular e inefável do Pai. Mas esta linguagem verdadeira de Jesus tornava-se absolutamente incompreensível para aqueles que se fechavam à fé, até ao ponto de O considerarem como blasfemo (cfr v. 59).

56. Jesus apresenta-Se como o cumprimento das espe­ranças dos patriarcas do Antigo Testamento. Eles mantiveram-se fiéis anelando ver o dia da Redenção. Referindo-se à fé dos patriarcas exclama São Paulo: «Todos eles morreram na fé, sem terem recebido os bens que lhes tinham sido prometidos, mas contemplando-os de longe e saudando-os, e confessando ao mesmo tempo ser peregrinos e hóspedes na terra» (Heb 11,1-2.13). Entre eles sobressai Abraão, nosso pai na fé (cfr Gal 3,7), que recebe a promessa de ser pai de um povo numeroso, o povo escolhido, de que nascerá o Messias.

O futuro cumprimento das promessas messiânicas foi já para Abraão causa de imensa alegria: «Abraão, nosso pai, tendo a certeza de que se cumpriria a antiga promessa e esperando contra toda a esperança, recebeu no nascimento do seu filho Isaac as primícias proféticas da alegria messiâ­nica. Tal alegria encontra-se como que transfigurada através de uma prova de morte, quando o seu filho único lhe é devolvido vivo, prefigurando a Ressurreição do Filho Único de Deus que havia de vir, prometido para um sacrifício em que se realizaria a Redenção. Abraão exultou ao pensar que veria o dia de Jesus Cristo, o dia da Salvação: ‘viu-o e alegrou-se’ (Gaudete in Domino, II).

-Jesus move-Se num plano superior ao dos patriarcas, pois estes só viram profeticamente, «de longe», o dia de Cristo, isto é, o acontecimento da Redenção, enquanto EÍe é que leva a cabo.

58. A resposta de Jesus à observação céptica dos judeus encerra uma revelação da Sua divindade. Ao dizer «antes de Abraão existir. Eu sou», o Senhor está a referir-Se à Sua eternidade, própria da natureza divina. Por isso exclama Santo Agostinho: «Reconhecei o Criador, distingui a cria­tura. Quem falava era descendente de Abraão, mas para que Abraão fosse feito, antes de Abraão Ele era» (In Ioann. Evang., 43,17).

Os Santos Padres evocam, em relação com as palavras de Cristo, a solene teofania do Sinai: «Eu sou o que sou» (Ex 3,14), e também a distinção que São João faz no prólogo do seu Evangelho entre um mundo que «foi feito» e o Verbo que «era» desde toda a eternidade (cfr Ioh 1,1-3). A expressão «Eu sou», empregada por Jesus de maneira absoluta, equivale, pois, a afirmar a Sua eternidade e a Sua divindade. Cfr a nota a Ioh 8, 21-24.

27.03.2015 – Jo 10, 31-42

31De novo os Judeus trouxeram pedras para O apedrejarem. 32Jesus dirigiu-lhes a palavra: Tenho-vos apresentado muitas boas obras devidas ao Pai. Por qual dessas obras Me quereis apedrejar? 33Replicaram-Lhe os Judeus: Não é por uma boa obra que Te queremos apedrejar, é por blasfêmia; e porque Tu, sendo homem, Te fazes Deus. 34Jesus respondeu-lhes: Não está escrito na vossa Lei: Eu disse: Vós sois deuses? 35Se ela chamou deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus — e a Escritura não pode abolir-se — 36de Mim, a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo, vós dizeis: «estás a blasfemar!» por Eu ter dito: «sou Filho de Deus»? 37Se não faço as obras de Meu Pai, não acrediteis em Mim. 38Mas, se as faço, embora não queirais acreditar em Mim, dai crédito às obras, para que reconheçais e fiqueis a saber que o Pai está em Mim e Eu estou no Pai.

39Procuravam então novamente prendê-Lo, mas Ele escapou-Se-lhes das mãos.

40Depois retirou-Se novamente para o outro lado do Jordão, para o lugar onde João tinha estado primeiro a baptizar, e por lá Se conservou. 41Muitos foram ter com Ele e diziam: João, é certo, não fez qualquer milagre, mas tudo quanto disse acerca d’Este era verdade. 42E muitos, ali, acreditaram n’Ele.

Comentário

31-33. Os judeus compreendem que Jesus afirma ser Deus, mas interpretam as Suas palavras como uma blas­fêmia. Chamaram-Lhe blasfemo quando perdoou os pecados do paralítico (Mt 9,1-8) e acusando-O de. blasfemo condená-Lo-ão também quando confessar solenemente a Sua di­vindade diante do Sinédrio (Mt 26,63-65). Nosso Senhor manifestou, pois, a Sua natureza divina; mas aqueles ouvin­tes rejeitaram esta revelação do mistério de Deus Encar­nado, fechando-se diante das provas que Jesus lhes oferecia. Por isso O acusam de que, sendo homem, Se faz Deus. A fé apoia-se em argumentos razoáveis — milagres e profe­cias — para crer que Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus, ainda que o nosso entendimento limitado nos impeça de compreender como isto pode ser. Na verdade, o Senhor, para reafirmar a Sua divindade, recorre a dois argumentos que os Seus adversários não poderão rebater: o testemunho da Sagrada Escritura — profecias — e o das Suas próprias obras — milagres —.

34-36. O Evangelho mostrou-nos já várias respostas do Senhor a objecções dos judeus. Agora Jesus recorre com paciência a uma argumentação que para eles tinha forca decisiva: a autoridade da Sagrada Escritura. Cita o Salmo 82 em que Deus censura uns juízes pela sua actuacão injusta, apesar de lhes ter recordado: «Sois deuses, todos vós, filhos do Altíssimo» (Ps 82,6). Se, segundo este Salmo, os filhos de Israel são chamados deuses e filhos de Deus, com quanta maior razão há-de ser chamado Deus Aquele que foi santificado e enviado por Deus. Com efeito, a natureza humana de Cristo ao ser assumida pelo Verbo fica santificada plena­mente e vem ao mundo para santificar os homens. «Os Santos Padres constantemente proclamam nada estar re­mido que não tivesse sido primeiro assumido por Cristo. Ora Ele assumiu por inteiro a natureza humana tal qual ela existe em nós, pobres e miseráveis, rejeitando dela apenas o pecado. De Si mesmo disse Cristo que era Aquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo» (Ad gentes, n. 3).

Com o uso que faz Jesus da Sagrada Escritura (cfr Mt 4,4.7.10; Lc 4,1.17, etc.) ensina-nos o caracter divino desta. Por isto a Igreja crê e afirma que «as coisas reveladas por Deus, contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a santa Madre Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo (Ioh 20,31; 2 Tim 3,16; 2 Pet 1,19-21; 3,15-16), têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria Igreja (…). E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salva­ção, quis que fosse consignada nas sagradas Letras» (Dei Verbum, n. 11).

37-38. As obras a que Se refere o Senhor são os Seus milagres, em que se manifesta o poder de Deus. Jesus apresenta as Suas palavras e as Suas obras como uma unidade, em que os milagres confirmam as Suas palavras e estas explicam o sentido dos milagres. Por isso, quando afirma que é o Filho de Deus, confirma esta revelação com os milagres que realiza. Assim pois, se ninguém pode negar o facto dos milagres, justo é reconhecer a veracidade das Suas palavras.

41-42. Em contraste com a oposição de uns (cfr Ioh 10,20.31.39), está a adesão de outros, que O vão buscar ao lugar para onde Se retirou. A actividade preparatória de São João Baptista continua a dar os seus frutos: aqueles que tinham aceitado a pregação do Baptista agora buscam Cristo, e creem ao verem que n’Ele se cumprem as palavras do Precursor quando anunciava que Jesus era o Messias, o Filho de Deus (Ioh 1,34).

O labor que se faz em nome do Senhor nunca é inútil. «Assim, meus queridos irmãos, mantei-vos firmes, inamovíveis, progredindo sempre na obra do Senhor, sabendo que o nosso trabalho não é vão no Senhor» (l Cor 15,58). Assim como a palavra e o exemplo do Baptista serviram para que mais tarde muitos cressem em Jesus, o exemplo apostólico dos cristãos nunca será de balde, ainda que às vezes não se veja imediatamente o resultado. «Semear. — Saiu o semea­dor… — Semeia aos punhados, alma de apóstolo. — O vento da graça arrastará a tua semente, se o sulco onde caiu não for digno… Semeia, e está certo de que a semente vingará e dará o seu fruto» (Caminho, n.° 794).

28.03.2015 – Jo 11, 45-56

45Então, muitos dos Judeus que tinham vindo ter com Maria, ao verem o que Ele fizera, acreditaram n’Ele.

46Alguns deles, porém, foram ter com os Fariseus e disseram-lhes o que Jesus havia feito. 47Os Sumos Sacerdotes e os Fariseus reuniram conselho. Que havemos de fazer— diziam eles — uma vez que este homem realiza tantos milagres? 48Se O deixarmos assim, todos acreditarão n’Ele, e os Romanos virão destruir-nos o Lugar e a Nação.

49Mas um deles, Caifás, sendo Sumo Sacer­dote nesse ano, disse-lhes: Vós não sabeis nada 50nem discorras que vos interessa que morra um só homem pelo povo e não pereça a Nação inteira! 51Isto, porém, não o disse por si próprio, mas sendo Sumo Sacerdote nesse ano, profetizou que Jesus ia morrer pela Nação, 52e não só pela Nação, mas também para trazer à unidade os filhos de Deus que andavam dispersos. 53A partir, pois, desse dia, ficaram decididos a dar-Lhe a morte. 54Jesus, por isso, já não andava abertamente entre os Judeus, mas retirou-Se dali para uma região junto do deserto, para uma cidade chamada Efraim, e por lá Se conservou com os discípulos.

55Estava próxima a Páscoa dos Judeus, e muitos subiram da província a Jerusalém, antes da Páscoa, para se purificarem. 56Pro-curavam eles a Jesus e diziam entre si, estacionando no Templo: Que vos parece? Que Ele não virá à festa?

 

Comentário

45-48. Uma vez mais Jesus, tal como o velho Simeão tinha predito, aparece como sinal de contradição (cfr Lc 2,34; Ioh 7,12.31.40; 9,16; etc.): diante do milagre da ressur­reição de Lázaro uns creem n’Ele (v. 45) e outros denun­ciam-No aos Seus inimigos (vv 46-47). Estas atitudes di­versas confirmam o dito na parábola do rico avarento: «Também não se convencerão mesmo que um dos mortos ressuscite» (Lc 16,31).

«O Lugar»: Com esta expressão, ou outras semelhantes («o lugar», «este lugar»), designava-se o Templo, lugar sagrado por excelência e, por extensão, toda a Cidade Santa, Jerusalém (cfr 2 Mach 5,19; Act 6,14).

49-53. Caifás exerceu o sumo pontificado do ano 18 ao 36 d. C. (cfr Começo do Ministério Público, p. 80). Caifás é o instrumento de Deus para profetizar a Morte redentora do Salvador, pois uma das funções do sumo sacerdote era consultar Deus para guiar o povo (cfr Ex 28,30; Num 27,21; l Sam 23,9; 30,7-8). Neste caso as palavras de Caifás têm um duplo sentido: um, pretendido por ele mesmo, é a sua intenção de dar morte a Cristo com o pretexto de garantir a tranquilidade e sobrevivência política de Israel; outro, que­rido pelo Espírito Santo, é o anúncio da fundação do novo Israel, a Igreja, mediante a Morte de Cristo na Cruz; Caifás não captou este sentido. Desta maneira o último pontífice da Antiga Aliança profetiza a investidura do Sumo Sacerdote da Nova, selada com o Seu próprio Sangue.

Quando o Evangelista afirma que Cristo ia morrer «para reunir os filhos de Deus que estavam dispersos» (v. 52), refere-se ao que o Senhor tinha dito acerca dos efeitos salvíficos da Sua morte (cfr Ioh 10,14-15). Já os profetas tinham anunciado a futura congregação dos Israelitas fiéis a Deus para formar o novo povo de Israel (cfr Is 43,5; ler 23,3-5; Ez 34,23; 37,21-24). Estes vaticínios cumpriram-se com a Morte de Cristo, que, ao ser exaltado na Cruz, atrai e reúne o verdadeiro Povo de Deus, formado por todos os crentes, sejam ou não Israelitas. O Concilio Vaticano II apoia-se neste passo ao falar da universalidade da Igreja: «Ao novo Povo de Deus todos os homens são chamados. Por isso, este Povo, permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os séculos/para se cumprir o desígnio da vontade de Deus, que, no princípio, criou uma só natureza humana e resolveu juntar em unidade todos os Seus filhos que estavam dispersos (cfr Ioh 11,52). Foi para isto que Deus enviou o Seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas; (cfr Heb 1,2), para ser mestre, rei e sacerdote universal, cabeça do novo e universal Povo dos filhos de Deus» (Lumen gentium, n. 13).

No século IV, São João Crisóstomo explicava aos seus fiéis a catolicidade da Igreja com estas palavras: «Que quer dizer ‘para reunir os que estavam próximo’ e ‘os que esta­vam dispersos’? Que os fez um só corpo. Quem reside em Roma sabe que os cristãos da índia são seus membros» (Hom. sobre S. João, 65,1).

54. Ainda não tinha chegado a hora da Sua morte; por isso Jesus actua com prudência, pondo os meios humanos para não precipitar os acontecimentos.

55. Sendo a Páscoa a festa mais solene dos Judeus, os fiéis chegavam uns dias antes a Jerusalém para se prepararem para a sua celebração por meio de abluções, jejuns e oferendas: práticas que não eram tanto exigidas pela lei moisaica como pela piedade do povo. Os próprios ritos da Páscoa, com a imolação do cordeiro, serviam de purificação e de expiação pelos pecados. A Páscoa dos Judeus era figura da Páscoa cristã, pois, como nos ensina o Apóstolo São Paulo, o nosso cordeiro pascal é Cristo (cfr l Cor 5,7), o qual Se ofereceu de uma vez para sempre ao eterno Pai na Cruz para expiar pelos nossos pecados. Paulo VI recordava esta verdade gozosa da nossa fé: «Sacrificou-Se? Mas, será que existe ainda uma religião que se exprima em sacrifícios? Não, os sacrifícios da antiga lei e das religiões pagas já não têm razão de ser; mas de um sacrifício, um sacrifício válido, único e perene, sem dúvida que tem sempre necessidade o mundo para a redenção do pecado humano; (…) e é o sacrifício de Cristo sobre a cruz, o que apaga o pecado do mundo; sacrifício que a Eucaristia actualiza no tempo, dando aos homens desta terra a possibilidade de participar nele» (Alocução de 17-VI-1976).

Se os Judeus se preparavam com tantos ritos e abluções para celebrar a Páscoa, que não devemos fazer nós para celebrar ou participar na Santa Missa e receber Cristo — nossa Páscoa — na Eucaristia! «Quando na Terra se recebem pessoas muito importantes, há luzes, música, trajes de gala. Para albergar Cristo na nossa alma, como devemos pre­parar-nos? Já teremos por acaso pensado como nos compor­taríamos se só se pudesse comungar uma vez na vida?» (Cristo que passa, n,° 91).

29.03.2015 – Mc 14, 1-15

Naquele tempo, o tetrarca Herodes ouviu falar de Jesus 2e disse para os seus cortesãos: É João Baptista. É Ele que ressuscitou dos mortos, e é por isso que as forças milagrosas operam n’Ele. 3De facto, Herodes prendera a João, pusera-o a ferros e lançara-o numa prisão, por causa de Hero­díade, mulher de Filipe, seu irmão. 4Porque João lhe dizia: « Não te é lícito tê-la». 5Quisera matá-lo, mas temia o povo, que o tinha por profeta.

6Veio, entretanto, o aniversário de Herodes, e a filha de Herodíade dançou em público e agradou a Herodes 7tanto que lhe prometeu, com juramento, dar-lhe o que pedisse. 8Ela, instigada pela mãe: Dá-me, disse, aqui, num prato, a cabeça de João Baptista. 9Entris­teceu-se o rei; porém, por causa do jura­mento e dos convivas, deu ordem para que lhe fosse entregue 10e mandou decapitar João no cárcere. 11A sua cabeça foi trazida num prato e dada à jovem que a levou à mãe. 12Os discípulos foram buscar o corpo e sepul­taram-no. Depois vieram dar a notícia a Jesus.

13Jesus, ao ouvir isto, retirou-Se dali numa Multiplicação barca, a sós, para um lugar deserto. O povo, porem, soube-o e das cidades foi, por terra, em Seu seguimento. 14Ao desembarcar, viu uma grande multidão: condoeu-Se dela e curou-lhe os enfermos. 15Sobre a tarde, vieram ter com Ele os discípulos e disseram-Lhe: Este lugar é deserto, e a hora já passou. Despede, pois, as turbas para que vão às aldeias comprar comestíveis.

Comentário

1. Herodes o tetrarca, denominado «Antipas» (vid. a nota a Mt 2, 1) é o mesmo que mais tarde aparece na Paixão (cfr Lc 23, 7ss.). Era filho de Herodes o Grande. Antipas governava a região da Galileia e Pereia em nome do imperador romano; estava casado, segundo atesta o historiador Flávio Josefo (Antiquitates iud., XVIII, 5,4), com uma filha de um rei da Arábia. Apesar deste matrimônio, convivia em concubinato com Herodíade, mulher de seu irmão. São João Baptista e o próprio Jesus Cristo repreenderam muitas vezes os costumes imorais do tetrarca, cujas relações ilícitas estavam expressamente proibidas na Lei (Lev 18,16; 20,21 ) e eram escândalo notório para o povo.

3-12. Em fins do século I Flávio Josefo dá também testemunho destes acontecimentos. Por ele sabemos outros pormenores mais, como o lugar — a fortaleza de Maqueronte — em que esteve encarcerado o Baptista, fortaleza que domina a ribeira oriental do Mar Morto e onde foi o banquete; e o nome, Salomé, da filha de Herodíade.

9. Importantes códices gregos e latinos trazem: «Entris­teceu-se o rei; mas pelo juramento e pelos comensais ordenou que lhe fosse dada ». Santo Agostinho comenta assim: «No meio dos excessos e da sensualidade dos convidados, fazem-se temerariamente juramentos, que depois se cumprem de forma ímpia» (Sermo 10). Com efeito, é pecado contra o segundo Mandamento da Lei de Deus fazer um juramento faltando à justiça, como neste caso; tal juramento não obriga. Mais ainda, se se cumpre, como fez Herodes, comete-se um novo pecado. Também nos ensina o Catecismo que se peca contra este preceito se o juramento se faz contra a verdade, ou sem necessidade (cfr Catecismo Romano, III, 3, 24). Cfr a nota a Mt 5, 33-37.

30.03.2015 – Jo 12, 1-11

Seis dias antes da Páscoa, veio Jesus a Betânia, onde se encontrava Lázaro, que Jesus havia ressuscitado dos mortos.

2Ofereceram-Lhe lá um jantar. Marta andava a servir, e Lázaro era um dos que estavam com Ele à mesa. 3Então Maria, tomando uma libra de perfume de nardo genuíno, de alto preço, ungiu os pés de Jesus e enxugou-Lhos com os seus cabelos. E a casa encheu-se com o cheiro do perfume. 4Disse Judas Iscariotes, um dos discípulos, aquele que O ia entregar: 5Por que motivo se não vendeu este perfume por trezentos denários, para se dar aos pobres? 6Disse isto, não por se importar com os pobres, mas porque era ladrão e porque, andando com a bolsa, tirava o que nela se metia. 7Respondeu Jesus: Deixa-a lá; foi para reservar o perfume para o dia da Minha sepultura; 8pois que pobres, sempre os haveis de ter convosco, mas a Mim nem sempre Me tereis.

9Soube então um grande número de Judeus que Ele ali Se encontrava e vieram, não só por causa de Jesus, mas também para verem Lázaro, que Ele tinha ressuscitado dos mortos, 10Ora os Sumos Sacerdotes haviam deliberado dar a morte a Lázaro também, 11porque muitos dos Judeus, por causa dele, se afastavam e acreditavam em Jesus.

Comentário

1- Jesus visita de novo os Seus amigos de Betânia. Comove ver como o Senhor tem esta amizade, tão divina e tão humana, que se manifesta num convívio frequente.

«E verdade que chamo sempre Betânia ao nosso Sacrário… — Faz-te amigo dos amigos do Mestre: Lázaro, Marta, Maria. — E depois já me não perguntarás por que chamo Betânia ao nosso Sacrário» (Caminho, n° 322).

2-3. Parece que houve duas unções do Senhor em ocasiões diferentes e por motivos diversos: a primeira, no princípio do Seu ministério público, na Galileia, relatada por São Lucas (7,36-50); a segunda, no fim da Sua vida, em Betânia, narrada aqui por São João, e que sem dúvida é a mesma que relatam São Mateus (26,6-13) e São Marcos (14,3-9). Tanto pelo tempo em que sucederam, como pelas circunstâncias par­ticulares, ambas as unções se distinguem com clareza: no primeiro caso tratou-se de uma manifestação de arrepen­dimento a que se seguiu o perdão; no segundo caso foi uma mostra delicada de amor, que Jesus interpretou, além disso, como antecipação da Sua unção para a sepultura (v. 7).

Ainda que as unções de que foi objecto Jesus tenham tido uma relevância muito especial, devem ser consideradas dentro dos usos da hospitalidade entre os orientais (veja-se a nota a Mc 14,3-9).

A libra era uma medida de peso equivalente a uns tre­zentos gramas: o denário, como indicámos noutras ocasiões, era a paga diária de um operário agrícola; portanto, o valor do frasco de perfume equivaleria ao salário de um ano completo.

«Que prova tão clara de magnanimidade o excesso de Maria! Judas lamenta que se tenha desperdiçado um perfume que valia — com a sua avareza fez muito bem as contas — pelo menos trezentos dinheiros.

«O verdadeiro desprendimento leva-nos a ser muito gene­rosos com Deus e com os nossos irmãos (…). Não sejais mesquinhos nem tacanhos com quem tão generosamente Se excedeu connosco, até Se entregar totalmente, sem medida. Pensai quanto vos custa — também no domínio econômico — ser cristão! Mas, sobretudo, não esqueçais que Deus ama quem dá com alegria (2 Cor 12, 7-8)» (Amigos de Deus, n° 126).

4-6. Por este passo e por Ioh 13,29 sabemos que Judas era o que administrava o dinheiro. Com pequenos roubos — não daria para mais a exígua bolsa de Jesus e dos Doze — tinham-se ido preparando em Judas as disposições que contribuíram para a traição final; esta queixa em relação à generosidade da mulher é uma hipocrisia. «Com frequência os servidores de Satanás se disfarçam de servidores da justiça (cfr 2 Cor 11,14-15). Por isso (Judas) ocultou a sua malícia sob capa de piedade» (Comentário sobre S. João, ad loc.).

7-8. Além de louvar o gesto magnânimo de Maria, o Senhor anuncia veladamente a proximidade da Sua morte, e até se vislumbra que será tão inesperada que mal haverá tempo para embalsamar o Seu corpo tal como costumavam fazê-lo os Judeus (Lc 23,56). Jesus não nega o valor da esmola que tantas vezes recomendou (cfr Lc 11,41; 12,33), nem a preocupação pelos pobres (cfr Mt 25,40), mas descobre a hipocrisia daqueles que, como Judas, aduzem falsamente motivos nobres para não dar a Deus a honra devida (ver também as notas a Mt 26,8-11; Mc 14,3-9).

9-11. A notícia da ressurreição de Lázaro teve grande eco entre a gente da Judeia e os que subiam a Jerusalém pela Páscoa; muitos creram em Jesus (Ioh 11,45), outros procura­vam-No (Ioh 11,56) quiçá mais por curiosidade (Ioh 12,9) que por fé. Seguir a Cristo exige de cada um de nós muito mais que um entusiasmo superficial e passageiro. Recordemo-nos daqueles «que, quando ouvem a palavra, naquele momento a recebem com alegria, contudo não têm raiz em si mesmos, mas são inconstantes; e depois, ao vir uma tribulação ou perseguição por causa da palavra, escandalizam-se logo» (Mc 4,16-17).

31.03.2015 – Jo 13, 21-33.36-38

21Dito isto, perturbou-Se Jesus interiormente e asseverou : Em verdade, em verdade vos digo: Um de vós há-de entregar-Me. 22Os discípulos olhavam uns para os outros, sem saberem a quem Se referia. 23Ora um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava à mesa junto do seio de Jesus. 24Então Simão Pedro faz-lhe sinal e diz-lhe: Pergunta lá de quem é que fala. 25Ele, inclinando-se sem mais sobre o peito de Jesus, pergunta-Lhe: Quem é, Senhor? 26Jesus responde: É aquele a quem Eu der o pedaço de pão que vou ensopar. E, depois de ensopar o pedaço de pão, toma-o e entrega-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. 27Nessa altura, depois do pedaço de pão, entrou nele Satanás. Diz-lhe então Jesus: O que tens a fazer, fá-lo sem demora. 28Isto, porém, não soube nenhum dos convivas por que lho disse, 29pois alguns, por Judas andar com a bolsa, pensavam que Jesus lhe dizia: Vai comprar aquilo de que precisamos para a festa; ou então que desse alguma coisa aos pobres. 30Tendo, pois, tomado o pedaço de pão, saiu imediatamente. E era noite…

31Depois de ele sair, diz Jesus: Agora é que foi glorificado o Filho do homem e Deus foi n’Ele glorificado. 32Uma vez que Deus foi n’Ele glorificado, também Deus O há-de glorificar em Si mesmo e glorificá-Lo-á sem demora.

33«Filhinhos, ainda estou um pouco convosco. Haveis de procurar-Me e, assim como disse aos Judeus: «Vós não podeis vir para onde Eu vou », também vo-lo digo agora.

36Diz-Lhe Simão Pedro: Para onde vais, Senhor? Para onde Eu vou — respondeu-lhe Jesus — não podes tu seguir-Me por agora; seguir-Me-ás depois. 37Diz-Lhe Pedro: Senhor, por que motivo não posso agora seguir-Te? Eu darei a minha vida por Ti! 38Darás a tua vida por Mim? responde Jesus. — Em ver­dade, em verdade te digo: Não cantará o galo sem tu Me haveres negado por três vezes!

Comentário

21. A dor de Cristo é proporcionada à gravidade da ofensa. Judas era um dos escolhidos por Jesus para ser Apóstolo: durante três anos tinha tido uma convivência familiar e íntima com Ele, tinha-O seguido para toda a parte, tinha visto os Seus milagres, ouvido a Sua doutrina divina e experimentado a ternura do Seu coração… E depois de tudo isto, no momento decisivo, Judas não só abandona o Mestre mas atraiçoa-O e vende-O. A traição de um íntimo é muito mais dolorosa e cruel que a de um estranho, porque supõe uma falta de lealdade. Também a vida espiritual do cristão é verdadeira amizade com Cristo; por isso assenta sobre a lealdade, à honradez e a fidelidade à palavra dada.

Judas tinha decidido entregar Jesus e pôs-se de acordo cornos príncipes dos sacerdotes (cfr Mt 26,14; Mc 14,10-11; Lc 22,3-6). A tentação, consumada já no coração de Judas, vinha-se preparando desde há tempos, como vemos na unção de Betânia quando protestou contra o gesto de amor de Maria; São João comenta então que o fez não por amor aos pobres mas porque era ladrão (cfr Ioh 12,6).

23. Naquele tempo, nas ocasiões solenes costumavam comer recostados sobre uma espécie de divão, chamado triclínio. Apoiavam-se sobre o lado esquerdo para comer com a mão direita. Deste modo era fácil reclinar-se naquele que estava à esquerda e falar de forma confidencial. O que lemos neste versículo é um pormenor que indica a intimidade e confiança que o Mestre e o discípulo amado tinham entre si (cfr Ioh 19,27; 20,2; 21,23), modelo do amor de Jesus por todos os Seus verdadeiros discípulos, e destes pelo Mestre.

26-27. O bocado que lhe oferece Jesus é mostra de amizade e, portanto, convite a emendar as suas perversas maquinações. Judas, porém, desperdiça esta oportunidade. «Bom é o que recebeu — comenta Santo Agostinho —, mas recebeu-o para a sua perdição, porque aquele que era mau recebeu com má disposição o que era bom» (In Joann. Evang., 61,6). A entrada de Satanás indica que desde esse momento Judas se abandona completamente à tentação diabólica.

29. «Todos estes pormenores foram conservados para nos dizer: se alguém vos ultraja, não vos indigneis. Pensai no culpável e chorai a sua violência natural. Aquele que lesa o bem de outro, o caluniador, que interesses fere primeiro? Os seus próprios, sem dúvida (…). Jesus Cristo enche dos Seus benefícios Judas o traidor, lava os seus pés, repreende-o sem acrimónia, censura-o com discrição, procura ganhar o seu coração, honra-o até comer com ele, até o abraçar; e inclusivamente quando Judas não recapacita, Jesus Cristo não cessa no Seu bom empenho» (Hom. sobre S. João, 71,4).

30. A indicação de que « era noite » não é só uma simples referência cronológica, mas alude às trevas como imagem do pecado, do poder tenebroso que naquele instante iniciava a Sua hora (cfr Lc 22,53). O contraste entre luz e trevas, oposição do mal ao bem, é muito freqüente na Bíblia, especialmente no quarto Evangelho, onde, já desde o Prólogo, nos é dito que Cristo é a Luz verdadeira que as trevas não receberam (cfr Ioh 1,5).

31-32. Esta glorificação refere-se sobretudo à glória que Cristo receberá a partir da Sua exaltação na Cruz (Ioh 3,14; 12,32). São João sublinha que a morte de Cristo é o começo do Seu triunfo; tanto é assim que a própria crucifixão poderia considerar-se como o primeiro passo da subida para o Pai. Ao mesmo tempo é glorificação do Pai, pois Cristo, aceitando voluntariamente a morte por amor, como acto supremo de obediência à Vontade divina, realiza o maior sacrifício com que o homem pode dar glória a Deus. O Pai corresponderá a esta glorificação que Cristo Lhe tributa glorificando-O a Ele, como Filho do Homem, isto é, na Sua Santíssima Humanidade, através da Ressurreição e exalta­ção à Sua direita. Desta forma a glória que o Filho dá ao Pai é ao mesmo tempo glória para o Filho.

Assim também o discípulo de Cristo encontrará o seu maior motivo de glória na identificação com a atitude obe­diente do Mestre. São Paulo indica-o claramente ao dizer: «Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo» (Gal 6,14).

33. A partir deste versículo o Evangelista relata o que costuma chamar-se o discurso da Ceia. Nele podem distinguir-se três partes. Na primeira, o Senhor começa por pro­clamar o Mandamento Novo (vv 33-35) e anuncia as negações de Pedro (w, 36-38). Explica-lhes depois que a Sua Morte vai ser o trânsito para o Pai (cap. 14), com Quem é um por ser Deus (vv 1-14). Também lhes anuncia que depois da Sua Ressurreição lhes enviará o Espírito Santo, que os guiará ensinando-lhes e recordando-lhes tudo o que lhes tinha dito (vv 15-31).

A segunda parte do discurso está contida nos capítulos 15 e 16. Jesus Cristo promete que aqueles que crerem terão uma nova vida de união com Ele, tão íntima como a que têm as varas com a videira (15,1-8). Para conseguir essa união é necessário praticar o Mandamento Novo do Senhor (vv 9-18). Previne-os das contradições que terão de sofrer, e anima-os com a promessa do Espírito Santo, que os defenderá e conso­lará (vv 18-27). A acção do Paráclito ou Consolador con­duzi-los-á eficazmente ao cumprimento da missão que Jesus lhes confiou (16,1-15). Fruto da presença do Espírito Santo será a plenitude do gozo (vv 16-33).

A terceira parte (cap. 17) recolhe a oração sacerdotal de Jesus, em que roga ao Pai pela Sua glorificação através da Cruz (vv 1-5). Pede também pelos Seus discípulos (vv. 6-19) e por todos os que por meio deles crerão n’Ele, para que, permanecendo no mundo sem serem do mundo, esteja neles o amor de Deus e deem testemunho de que Cristo é o enviado do Pai (vv. 20-26).

36-38. Uma vez mais Pedro fala ao seu Mestre com simplicidade e sincera disposição de O seguir até à morte. Mas ainda não estava preparado. O Senhor, comenta Santo Agostinho, «estabelece aqui uma dilação; não destrói a esperança, mas confirma-a dizendo ‘seguir-Me-ás mais tarde’. Para que te apressas, Pedro? Ainda não te tinha fortalecido a pedra com a dureza da sua entranha: não te desequilibres agora com a tua presunção. Agora não podes seguir-Me, mas não desesperes, depois fá-lo-ás» (In Ioann. Evang., 66,1). Com efeito, nesses momentos o entusiasmo de Pedro é ar­dente, mas pouco firme. Mais tarde adquirirá a fortaleza que se apoia na humildade. Então, quando não se considerar digno de morrer como o Mestre, morrerá numa cruz, de cabeça para baixo, cravando na terra de Roma essa pedra sólida que continua a viver nos que lhe sucedem e que é o fundamento sobre o qual se edifica, indefectível, a Igreja. As negações de Pedro, sinal da sua debilidade, foram amplamente compensadas pelo seu profundo arrependi­mento. «Que cada um tome exemplo de contrição e se caiu não desespere, mas confie sempre em que pode tornar-se digno do perdão» (S. Beda, In Ioann. Evang. expositio, ad loc.).

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