em Evangelho do dia

Fevereiro de 2016

01.02.2016 – Mc 5, 1-20

Chegaram ao lado de lá do mar, ao país dos Gerasenos. 2Apenas saído da barca, veio logo dos sepulcros ao Seu encontro um homem possuído do espírito imundo, 3o qual tinha a morada nos sepulcros, e já ninguém mais o podia prender nem com algemas; 4pois que, muitas vezes preso com grilhões e algemas, tinha quebrado as algemas e despedaçado os grilhões, e ninguém con­seguia dominá-lo. 5Andava sempre, dia e noite, nos sepulcros e pelos montes, gritando e retalhando-se a si mesmo com pedras. 6Ao ver de longe a Jesus, correu e prostrou-se-Lhe aos pés, 7bradando,em alta voz: Que tens que ver comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Por Deus Te esconjuro que me não atormentes. 8Porque lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem! 9E perguntava-lhe: Como te chamas? Chamo-me Legião, diz-Lhe ele, porque somos muitos. 10E pedia-Lhe instantemente que os não lançasse fora daquele país.

11Ora andava ali pelo monte uma grande vara de porcos a pastar.12 Suplicaram-Lhe, pois: Manda-nos para os porcos, para que entremos neles. 13Deu-lhes licença: e os espí­ritos imundos saíram e entraram nos porcos e a vara, cerca de dois mil, despenhou-se, ladeira abaixo, no mar, e no mar se afogou. 14Os guardadores fugiram e espalharam a notícia pela cidade e pelos campos, e acudiram todos a ver o que é que tinha acontecido. I5Chegando perto de Jesus, viram o possesso que tinha tido o Demônio Legião, sentado, vestido e em seu juízo, e tiveram medo. 16Os presentes contaram o que tinha sucedido ao endemoninhado e o caso dos porcos, 17e eles começaram a pedir a Jesus que saísse do seu termo. l8Ao subir para a barca, o que tinha sido possesso pedia-Lhe para ir com Ele. 19Mas Ele não o “deixou, antes lhe disse: Vai para tua casa, para os teus, e conta-lhes tudo o que o Senhor te fez e como Se compadeceu de ti. 20Ele partiu e começou a apregoar na Decápole tudo o que Jesus lhe tinha feito, e todos ficavam mara­vilhados.

Comentário

1-20. Gerasa estava povoada principalmente por pagãos, como se depreende da existência de uma vara de porcos tão numerosa, que pertenceria sem dúvida a muitos donos. Para os Judeus era proibida a criação destes animais e o comer da sua carne (Lev 11,7).

Este milagre põe em relevo, uma vez mais, a existência do demônio e o seu influxo na vida dos homens: pode causar dano — se Deus o permite — não só aos homens, mas também aos animais. Quando Cristo permite que entrem nos porcos, fica patente a malícia dos demônios: estes consideram um grande tormento não poder causar dano aos homens e por isso rogam-Lhe que, pelo menos, possam fazer mal aos animais. Cristo permite isto para indicar que com a mesma violência e consequências com que entraram nos porcos, o fariam nos homens, se Deus não lhes pusesse obstáculo.

É claro que a intenção de Jesus não foi castigar os donos com a perda da vara de porcos, pois os donos, como pagãos, não estavam sujeitos aos preceitos da Lei judaica. A morte dos porcos é o sinal visível de que o demônio tinha saído daquele homem.

Jesus permitiu a perda de uns bens materiais porque eram incomparavelmente inferiores ao bem espiritual que supunha a cura do endemoninhado. Cfr a nota a Mt 8,28-34.

15-20. Contrasta a diferente atitude diante de Jesus Cristo: os gerasenos pedem a Jesus que Se afaste da cidade; o que foi libertado do demônio quer ficar junto de Jesus e segui-Lo. Os habitantes de Gerasa tiveram perto de si o Senhor, puderam ver os Seus poderes divinos, mas fecharam-se sobre si mesmos, pensando apenas no prejuízo material que constituiu a perda dos porcos; não se dão conta da Obra admirável que Jesus fez. Cristo passou junto deles, ofere­cendo-lhes a Sua graça, mas não corresponderam e rejei­taram Jesus, O que esteve endemoninhado quer segui-Lo com os outros discípulos. Mas Jesus não o admite; dá-lhe um encargo que mostra a misericórdia sem limites do Senhor para com todos os homens, inclusive para com os que O rejeitam: ele deve ficar em Gerasa e anunciar a todos os seus habitantes o que o Senhor fez com ele. Talvez reconsiderem e se dêem conta de quem é O que os visitou e saiam do pecado em que estão sumidos por avareza. Estas duas atitudes dão-se sempre que Cristo passa. E também a misericórdia e o chamamento contínuo do Senhor, que não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva (cfr Ez 18,23).

20. Decápole, ou «país das dez cidades». Entre elas as mais conhecidas são: Damasco, Filadélfia, Citópola ou Beisân, Gadara, Pella e Gerasa. A região estava situada a este do lago de Genesaré e era habitada principalmente por pagãos de origem grega e síria: O governador romano da Síria era quem exercia a jurisdição sobre este território.

02.02.2016 – Lc 2, 22-40

22Quando chegaram os dias da purificação, de segundo a Lei de Moisés, levaram-No a Jerusalém para O apresentarem ao Senhor, do Menino conforme está escrito na Lei do Senhor, que todo o primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor, 24e para oferecerem em sacrifício, segundo o que se diz na lei, um par de rolas ou duas pombinhas. 25Vivia então em Jerusalém um homem chamado Simeão; esse homem, justo e piedoso, esperava a consolação de Israel, e o Espírito Santo estava nele. 26Revelara-lhe o Espírito Santo que não veria a morte antes de ter visto o Messias do Senhor; 27e veio ao Templo, movido pelo Espírito. Quando os pais trouxeram o Menino Jesus, a fim de procederem conforme o uso da Lei que Lhe dizia respeito, 28ele recebeu-O nos braços e bendisse a Deus, exclamando:

29«Agora, Senhor, podes despedir o Teu servo em paz segundo a Tua palavra, 30porque viram os meus olhos a Salvação 3lque preparaste ao alcance de todos os povos: 32luz para se revelar aos pagãos e glória de Israel, Teu povo».

33Seu pai e Sua mãe estavam admirados com as coisas que d’Ele se diziam. 34Simeão abençoou-os e disse a Maria, Sua mãe: Olha que Ele está aqui para a queda e o ressurgi­mento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição — 35uma espada te há-de traspassar a tua própria alma — a fim de se revelarem os pensamentos de muitos espí­ritos.

36Havia também uma profetisa, Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idademuito avançada e tinha vivido casada sete anos, após o seu tempo de donzela, 37e viúva, até aos oitenta e quatro. Não se afastava do Templo, servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações. 38Vindo nessa mesma oca­sião, pôs-se a louvar a Deus por sua vez e a falar do Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém. 39Depois de terem cumprido tudo o que infância ordenava a Lei do Senhor, voltaram para a de Jesus Galileia, para a sua cidade de Nazaré. 40Entretanto, o Menino crescia e robustecia-Se, enchendo-Se de sabedoria, e a graça de Deus estava n’Ele.

Comentário

22-24. A Sagrada família sobe a Jerusalém com o fim de dar cumprimento a duas prescrições da Lei de Moisés: purificação da mãe, e apresentação e resgate do primogênito. Segundo Lev 12,2-8, a mulher ao dar à luz ficava impura. A mãe de filho varão aos quarenta dias do nascimento terminava o tempo de impureza legal com o rito da purifi­cação. Maria Santíssima, sempre virgem, de facto não estava compreendida nestes preceitos da Lei porque nem tinha concebido por obra de varão, nem Cristo ao nascer rompeu a integridade virginal de Sua Mãe. Não obstante, Maria Santíssima quis submeter-se à Lei, embora não estivesse obrigada.

«Aprenderás com este exemplo, meu pateta, a cumprir a Santa Lei de Deus, apesar de todos os sacrifícios pessoais?

«Purificação! Tu e eu, sim; nós realmente é que preci­samos de purificação! — Expiação, e, além da expiação, o Amor. — Um amor que seja cautério, que abrase a sujidade da nossa alma, que incendeie com chamas divinas a miséria do nosso coração» (Santo Rosário, quarto mistério gozoso).

Igualmente, em Ex 13,2.12-13 indica-se que todo o primogênito pertence a Deus e deve ser-Lhe consagrado, isto é, dedicado ao culto divino. Não obstante, desde que este foi reservado à tribo de Levi, aqueles primogênitos que não pertenciam a esta tribo não eram dedicados ao culto e para mostrar que continuavam a ser propriedade especial de Deus, realizava-se o rito do resgate.

A Lei mandava também que os israelitas oferecessem para os sacrifícios uma rês menor, por exemplo, um cordeiro, ou se eram pobres um par de rolas ou dois pombinhos. O Senhor que «sendo rico Se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a Sua pobreza» (2 Cor 8,9), quis que fosse (oferecida por Ele a oferenda dos pobres.

25-32. Simeão, qualificado como homem justo e temente a Deus, atento à vontade divina, dirige-se ao Senhor na sua oração como um vassalo ou servidor leal que depois de ter estado vigilante durante toda a sua vida, à espera da vinda do seu Senhor, vê agora por fim chegado esse momento, que deu sentido à sua existência. Ao ter o Menino nos seus braços, conhece não por razão humana mas por graça especial de Deus, que esse Menino é o Messias prometido, a Consolação de Israel, a Luz dos povos.

O cântico de Simeão (vv. 29-32) é, além disso, uma verda­deira profecia. Tem este cântico duas estrofes: a primeira (vv. 29-30) é uma acção de graças a Deus, trespassada de profundo gozo, por ter visto o Messias. A segunda (vv. 31-32) acentua o caracter profético e canta os benefícios divinos que o Messias traz a Israel e a todos os homens. O cântico realça o caracter universal da Redenção de Cristo, anunciada por muitas profecias do AT (cfr Gen 22,18; Is 42,6; Is 60,3; Ps 98,2).

Podemos compreender o gozo singular de Simeão ao considerar que muitos patriarcas, profetas e reis de Israel anelaram ver o Messias e não O viram, e ele, pelo contrário, tem-No nos seus braços (cfr Lc 10,24; 1Pet 1,10).

33. A Virgem Santíssima e São José admiravam-se não porque desconhecessem o mistério de Cristo, mas pelo modo como Deus o ia revelando. Uma vez mais nos ensinam a saber contemplar os mistérios divinos no nascimento de Cristo.

34-35. Depois de os abençoar, Simeão, movido pelo Espírito Santo, profetiza de novo sobre o futuro do Menino e de Sua Mãe. As palavras de Simeão tornaram-se mais claras para nós ao cumprirem-se na Vida e na Morte do Senhor.

Jesus, que veio para a salvação de todos os homens, não obstante, será sinal de contradição porque alguns obstinar-se-ão em rejeitá-Lo, e para estes Jesus será a sua ruína. Para outros, porém, ao aceitá-Lo com fé, Jesus será a sua salvação, livrando-os do pecado nesta vida e ressuscitando-os para a vida eterna.

As palavras dirigidas à Santíssima Virgem anunciam que Maria teria de estar intimamente unida à obra redentora do seu Filho. A espada de que fala Simeão expressa a participação de Maria nos sofrimentos do Filho; é uma dor inenarrável, que traspassa a alma. O Senhor sofreu na Cruz pelos nossos pecados; também são os pecados de cada um de nós que forjaram a espada de dor da nossa Mãe. Por conseguinte, temos um dever de desagravo não só com Deus, mas também com a Sua Mãe, que é igualmente nossa Mãe. As últimas palavras da profecia, «a fim de se revelarem os pensamentos de muitos espíritos», enlaçam com o v. 34: na aceitação ou rejeição de Cristo manifesta-se a rectidão ou a perversão dos corações.

36-38. O testemunho de Ana é muito parecido ao de Simeão: como este, também ela tinha estado à espera da vinda do Messias durante a sua longa vida, num serviço fiel à Deus; e também é premiada com o gozo de O ver. «Pôs-se a falar», isto é, do Menino: louvava a Deus em oração pessoal, e exortava os outros a que cressem que aquele Menino era o Messias.

Assim, pois, o nascimento de Cristo manifesta-se por três espécies de testemunhas e de três modo diferentes: primeiro, pelos pastores, depois do anúncio do anjo; segundo, pelos Magos, guiando-os a estrela; terceiro, por Simeão e Ana, movidos pelo Espírito S Quem, como Simeão e Ana, persevera na piedade e no serviço a Deus, por muito pouca valia que pareça ter a sua vida aos olhos dos homens, converte-se em instrumento apto do Espírito Santo para dar a conhecer Cristo aos outros. Nos Seus planos redentores, Deus vaie-Se destas almas simples para conceder muitos bens à humanidade.

39. Antes da volta a Nazaré aconteceram os factos da fuga e permanência no Egipto que São Mateus relata em 2,13-23.

40. «Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto criança, isto é, revestido da fragilidade da natureza humana, devia crescer e fortalecer-Se; mas enquanto Verbo eterno de Deus não necessitava de Se fortalecer nem de crescer. Donde muito bem é descrito cheio de sabedoria e de graça» (In Lucae Evangelium expositio, ad loc.).

03.02.2016 – Mc 6, 1-6

Partindo depois dali, foi à Sua terra, e os discípulos acompanharam-No. 2Vindo o sábado, começou a ensinar na sinagoga, e os muitos que O ouviam exclamavam admi­rados: Donde Lhe vieram todas estas coisas? E que sabedoria é esta que Lhe foi dada? E os prodígios como esses que opera com Suas mãos? 3Porventura não é Este o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E Suas irmãs não vivem aqui entre nós? 4E escandalizavam-se d’Ele. Mas Jesus dizia-lhes: O profeta não é desconsiderado senão na sua terra, entre os seus parentes e na sua casa. 5E não pôde fazer ali nenhum milagre. Apenas curou um pequeno número de enfermos, impondo-lhes as mãos. 6E admirava-Se da incredulidade daquela gente.

Comentário

1-3. Jesus é designado aqui pelo Seu trabalho e por ser «o filho de Maria». Indicará isto que São José já tinha morrido? Não o sabemos, ainda que seja provável. Em qualquer caso, é de sublinhar esta expressão: nos Evangelhos de São Mateus e de São Lucas tinha-se narrado a concepção virginal de Jesus. O Evangelho de São Marcos não refere a infância do Senhor, mas talvez possa ver-se uma alusão à concepção e nascimento virginais, na designação «o filho de Maria».

«José, cuidando daquele Menino como lhe tinha sido ordenado, fez de Jesus um artesão: transmitiu-Lhe o seu ofício. Por isso, os vizinhos de Nazaré falavam de Jesus chamando-Lhe indistintamente faber e fabrí filius: artesão e filho de artesão» (Cristo que passa, n.° 55). Desta maneira o Senhor fez-nos saber que a nossa vocação profissional não é alheia aos Seus desígnios divinos.

«Esta verdade, segundo a qual o homem mediante o trabalho participa na obra do próprio Deus, seu Criador, foi particularmente posta em relevo por Jesus Cristo, aquele Jesus com Quem muitos dos Seus primeiros ouvintes em Nazaré ‘ficavam admirados e exclamavam: ‘Donde Lhe veio tudo isso? E que sabedoria é esta que lhe foi dada?… Porventura não é Ele o carpinteiro’…?’ (Mc 6,2-3). Com efeito, Jesus não só proclamava, mas, sobretudo punha em prática com obras as palavras da Sabedoria eterna, o ‘Evangelho’ que Lhe tinha sido confiado. Tratava-se verdadeiramente do ‘evangelho do trabalho’ pois Aquele que o proclamava era Ele próprio homem do trabalho, do trabalho artesanal como José de Nazaré (cfr Mt 13, 55). Ainda que não encontremos nas Suas palavras o preceito especial de trabalhar — antes pelo contrário, uma vez, a proibição da preocupação excessiva com o trabalho e com os meios de subsistência (Mt 6, 25-34) — contudo, a eloquência da vida de Cristo é inequívoca: Ele pertence ao ‘mundo do trabalho’ e tem apreço e respeito pelo trabalho humano. Pode-se até afirmar: Ele encara com amor este trabalho, bem como as suas diversas expressões, vendo em cada uma delas uma linha particular da semelhança do homem com Deus, Criador e Pai» (Laborem exercens, n. 26). São Marcos dá uma lista de irmãos de Jesus, e fala genericamente da existência de umas irmãs. Mas a palavra «irmão» não significava necessariamente filho dos mesmos pais. Podia indicar também outros graus de parentesco: primos, sobrinhos, etc. Assim em Gen 13, 8 e 14, 14.16 chama-se a Lot irmão de Abraão, enquanto por Gen 12,5e 14, 12 sabemos que era sobrinho, filho de Arão, irmão de Abraão. O mesmo acontece com Labão, a quem se chama irmão de Jacob (Gen 29,15), quando era irmão de sua mãe (Gen 29,10); e noutros casos: cfr 1 Chr 23,21-22, etc. Esta confusão deve-se à pobreza da linguagem hebraica e aramaica: carecem de termos diferentes e usam uma mesma palavra, irmão, para designar graus diversos de parentesco.

Por outros passos do Evangelho, sabemos que Tiago e José, aqui nomeados, eram filhos de Maria de Cléofas (Mc 15, 40; Ioh 19, 25). De Simão e de Judas temos menos dados. Parece que são os Apóstolos Simão o Zelotes (Mt 10,4; Mc 3, 18) e Judas Tadeu (Lc 6, 16), autor da epístola católica em que se declara «irmão» de Tiago. Por outro lado, ainda que se fale de Tiago, Simão e Judas como irmãos de Jesus, nunca se diz que sejam «filhos de Maria», o que teria sido natural se tivessem sido estritamente irmãos do Senhor. Jesus aparece sempre como filho único; para os de Nazaré. Ele é «o filho de Maria» (Mt 13, 55). Jesus ao morrer confia Sua mãe a São João (cfr Ioh 19,26-27), o que revela que Maria não tinha outros filhos. A isto acrescenta-se a fé constante da Igreja, que considera Maria como a sempre Virgem: «Virgem antes do parto, no parto, e para sempre depois do parto» (Cum quorumdam).

5-6. Jesus não fez ali milagres: não porque Lhe faltasse poder, mas como castigo da incredulidade dos Seus concida­dãos. Deus quer que o homem use da graça oferecida, de sorte que, ao cooperar com ela, se disponha a receber novas graças. Em frase gráfica de Santo Agostinho,« Deus que te criou sem ti, não te salvará sem ti» (Sermo 169).

04.02.2016 – Mc 6, 7-13

7Depois chamou a Si os doze e foi-os enviando dois a dois, dando-lhes poder sobre os espíritos imundos 8e recomendando-lhes que não levassem nada para o caminho, a não ser um simples bordão, nem pão, nem alforje, nem cobres no cinto. 9Calçai sandá­lias, muito embora, mas não vistais duas túnicas. 10E dizia-lhes: Hospedai-vos na casa em que primeiro entrardes e ficai aí até partirdes. 11E, se em algum lugar vos não receberem nem ouvirem, ao sairdes de lá, sacudi o pó que se vos pegou aos pés, em testemunho contra eles. 12Partiram, pois, e pregaram que fizessem penitência; 13expulsavam muitos Demônios e ungiam com azeite muitos enfermos e curavam-nos.

Comentário

7. Cfr as notas a Mc 1, 27; 3, 14-19.

8-9. Jesus Cristo exige estar livre de qualquer espécie de ataduras no momento de pregar o Evangelho. O discípulo, que tem o encargo de levar o Reino de Deus às almas mediante a pregação, não deve pôr a sua confiança nos meios humanos, mas na Providência de Deus. Aquilo de que há-de necessitar para viver dignamente como arauto do Evangelho deverá ser procurado pelos próprios beneficiários da pre­gação, pois o operário é digno de sustento (cfr Mt 10, 10).

« Tanta deve ser a confiança em Deus daquele que prega que há-de estar seguro de que não lhe faltará o necessário para viver, ainda que ele o não possa procurar; visto que não se deve ocupar menos das coisas eternas, por se ocupar das temporais» (In Marci Evangelium expositio, ad loc.). «Daqui se deduz que o Senhor não diz neste preceito que os anunciadores do Evangelho não podem viver de outro modo que do que lhes deem aqueles a quem o anunciam, mas que lhes dá poder de agir assim, fazendo-lhes saber que têm direito a isso; de outra maneira, o Apóstolo (São Paulo) teria agido contra este preceito, ao querer viver do trabalho das suas mãos» (De consensu Evangelistarum, II, 30).

13. São Marcos é o único Evangelista que fala de uma unção com azeite aos doentes. O azeite utilizava-se frequentemente para curar as feridas — cfr Is 1, 6; Lc 10, 34 —, e os Apóstolos empregam-no também para curar miraculosamente as doenças corporais, segundo o poder que Jesus lhes conferiu. Daí o uso do azeite como matéria do sacramento da Unção dos Doentes, que cura as feridas da alma e inclusivamente as do corpo, se convém. Como ensina o Concilio de Trento — Doctrina de sacramento extremae unctionis, cap. l —, há que ver «insinuado» neste versículo de São Marcos o sacramento da Unção dos Doentes, que será instituído pelo Senhor, e mais tarde «recomendado e promulgado aos fiéis pelo Apóstolo São Tiago» (cfr Iac 5,14 e ss.).

05.02.2016 – Mc 6, 14-29

14Ouviu o rei Herodes falar de Jesus, pois o Seu nome se tinha tornado célebre, e dizia: João Baptista ressuscitou dos mortos, e é por isso que essas forças milagrosas operam nele. 15Outros, porém, diziam: É Elias; e outros: É um profeta, como um dos antigos profetas. 16Mas Herodes, ouvindo isto, dizia: É João, a quem eu decapitei, que ressuscitou.

17De facto, Herodes mandara prender a João e pusera-o a ferros numa prisão por causa de Herodiade, mulher de seu irmão Filipe, com a qual tinha casado. 18Porque João dizia a Herodes: Não te é lícito ter a mulher de teu irmão. 19Herodíade perseguia-o e queria fazê-lo condenar à morte, mas não podia. 20É que Herodes, sabendo que João era homem justo e santo, temia-o e protegia-o e, quando o ouvia, ficava muito perplexo, mas escutava-o com prazer. 21Chegou enfim um dia favorável, quando Herodes, no seu aniversário natalício, deu um banquete aos grandes da sua corte e aos oficiais e aos principais da Galileia. 22A filha da mesma Herodíade apresentou-se a dançar e agradou a Herodes e aos convivas, tanto que o rei disse à moça: Pede-me o que quiseres e dar-to-ei. 23E jurou-lhe: Tudo o que me pedires te darei, ainda que seja metade do meu reino. 24Ela saiu a perguntar à mãe: Que hei-de pedir? Respondeu-lhe: A cabeça de João Baptista. 25Voltou ela, a correr, à pre­sença do rei e fez-lhe assim o pedido: Quero que me dês agora mesmo, num prato, a cabeça de João Baptista. 26Entristeceu-se muito o rei, mas, por causa do juramento e dos convivas, não quis faltar-lhe à palavra. 27E logo o rei mandou um guarda com ordem de trazer a cabeça dele. Este foi e decapitou-o no cárcere; 28e trouxe a cabeça num prato e deu-a à moça, e a moça deu-a à mãe. 29Ao saberem disso, os seus discípulos vieram e levaram o corpo e depuseram-no num sepulcro.

Comentário

14. De acordo com o uso popular, São Marcos chama a Herodes rei; mas com precisão jurídica apenas era tetrarca, como dizem São Mateus (14, 1) e São Lucas (9, 7), isto é, governador de certa importância. Este Herodes, que São Marcos aqui cita, era Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, aquele que era rei dos Judeus nos anos do nascimento de Jesus Cristo. Cfr a nota a Mt 2, 1.

16-29. E de notar que se intercala no relato evangélico o extenso episódio da morte de João Baptista. A razão é que São João Baptista tem relevância especial na História da Salvação, porque é o Precursor, encarregado de preparar os caminhos do Messias. Por outro lado, João Baptista tinha um grande prestígio entre o povo: consideravam-no profeta (Mc 11,32) e alguns inclusivamente o Messias (Lc 3, 15; Ioh 1, 20) e acorriam a ele de muitos lugares (Mc 1, 5). O próprio Jesus chegou a dizer: «Entre os nascidos de mulher, não surgiu nenhum maior que João Baptista» (Mt 11,11). Mais tarde, o apóstolo São João voltaria a falar dele no seu Evangelho: «Houve um homem enviado por Deus, que se chamava João» (Ioh 1, 6). Mas no texto sagrado esclarece-se, não obstante, que o Baptista, apesar de tanto, não era a luz, mas a testemunha da luz (Ioh 1, 6-8). Propriamente apenas era a lâmpada que levava a luz (Ioh 5,35).

De João Baptista é-nos dito aqui que era justo e que pregava a cada qual aquilo de que necessitava: à multidão do povo, aos publicanos, aos soldados (Lc 3,10-14); aos fariseus e aos saduceus (Mt 3, 7-12), ao próprio rei Herodes (Mc 6, 18-20). Este homem humilde, íntegro e austero, garante com a sua vida o testemunho que davam as suas palavras sobre o Messias Jesus (Ioh 1, 29.36-37).

26. Os juramentos e as promessas de conteúdo imoral não se devem fazer. E, se se fizeram, não se devem cumprir. Esta é a doutrina da Igreja, resumida pelo Catecismo Maior de São Pio X, n.° 383, da seguinte maneira: «Estamos obrigados a manter o juramento de fazer coisas injustas ou ilícitas? Não só não estamos obrigados, mas, pelo contrário, pecamos ao fazê-las, como coisas proibidas pela Lei de Deus ou da Igreja».

06.02.2016 – Mc 6, 30-34

30Entretanto os «apóstolos voltaram a reunir-se com Jesus e contaram-Lhe tudo quanto tinham feito e ensinado. 31E Ele disse-lhes: Vinde vós outros sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco. Eram com efeito muitos os que iam e vinham, e eles nem sequer tinham tempo para comer. 32Partiram, pois, de barco, a sós, para um lugar deserto.

33Viram-nos, porém, partir e muitos perceberam para onde iam; e, por terra, concorreram lá de todas as cidades e chegaram primeiro do que eles. 34Ao desembarcar, viu uma grande multidão e condoeu-Se dela, por­que eram como ovelhas sem pastor, e come­çou a ensinar-lhes muitas coisas.

Comentário

30-31. Vê-se aqui a intensidade do ministério público de Jesus. Era tal a dedicação às almas que, por duas vezes, São Marcos faz notar que inclusivamente lhes faltava o tempo para comer (cfr Mc 3, 20). O cristão deve estar disposto a sacrificar o próprio tempo, e inclusivamente o descanso, para serviço do Evangelho. Esta atitude de disponibilidade levar-nos-á a saber mudar os nossos planos quando o exija o bem das almas.

Mas também ensina aqui Jesus a ter senso comum e não pretender fazer loucamente certos esforços, que excedem absolutamente as nossas forças naturais: «O Senhor faz descansar os Seus discípulos para ensinar aos que governam que aqueles que trabalham por obras ou por palavras não podem trabalhar sem interrupção» (In Marci Evangelium expositio, ad loc.). «Quem se entrega a trabalhar por Cristo não há-de ter um momento livre, porque o descanso não é não fazer nada; é distrair-se em actividades que exigem menos esforço» (Caminho, n.° 357).

34. O Senhor fez planos para descansar algum tempo, juntamente com os Seus discípulos, das absorventes tarefas apostólicas (Mc 6, 31-32). Mas não os pode levar a cabo pela presença de um grande número de gente que acorre a Ele ávida da Sua palavra. Jesus Cristo não só não Se aborrece com eles, mas sente compaixão ao ver a necessidade espiritual que têm. «Morre o Meu povo por falta de doutrina» (Os 4, 6). Necessitam de instrução e o Senhor quer satisfazer esta necessidade por meio da pregação. «A fome e a dor comovem Jesus, mas sobretudo comove-O a ignorância» (Cristo que passa, n.°109).

07.02.2016 – Lc 5, 1-11

1Uma vez em que a multidão se apertava em torno de Jesus, a ouvir a palavra de Deus, e Ele mesmo de pé junto ao lago de Genesaré, 2viu dois barcos estacionados no lago. Os pescadores, que deles se haviam retirado, lavavam as redes. 3Depois de subir para um dos barcos, que era de Simão, pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra para o largo; e, sentando-Se, pôs-Se a ensinar do barco as multidões.

4Quando cessou de falar, disse a Simão: Faz-te ao largo; e vós, largai as redes para a pesca. 5Disse-Lhe Simão, em resposta: Mestre, moirejámos toda a noite e nada apanhamos; todavia, porque o dizes, largarei as redes. 6E, depois de o terem feito, apanharam grande quantidade de peixe. 7Ora as redes estavam a romper-se, e eles fizeram sinal aos companheiros que se encontravam no outro barco, para os virem ajudar. Estes vieram; e encheram ambos os barcos, a ponto de se irem afundando. 8Ao ver isso, Simão Pedro lançou-se aos pés de Jesus, dizendo: Afasta-Te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador. 9De facto, enchera-se de espanto, ele e todos os que com ele estavam, por causa da pesca que tinham feito, 10o mesmo sucedendo a Tiago e a João, filhos de Zebedeu, que eram companheiros de Simão. Disse Jesus a Simão: Não tenhas receio; doravante ficarás a apanhar homens. 11E eles, depois de reconduzirem os barcos para terra, deixaram tudo e seguiram-No.

Comentário

1. “Tal como hoje! Não estais a ver? Estão desejando ouvir a mensagem de Deus, embora o dissimulem exteriormente. Talvez alguns se tenham esquecido da doutrina de Cristo; talvez outros, sem culpa sua, nunca a tenham aprendido e olhem para a religião como coisa estranha… Mas convencei-vos de uma realidade sempre actual: chega sempre um momento em que a alma não pode mais; em que não lhe bastam as explicações vulgares; em que não a satisfazem as mentiras dos falsos profetas. E, mesmo que nem então o admitam, essas pessoas sentem fome, desejam saciar a sua inquietação com os ensinamentos do Senhor” (Amigos de Deus, n° 260).

3. Os Santos Padres viram nesta barca de Pedro, a que o Senhor sobe, uma imagem da Igreja peregrina nesta terra. “Esta é aquela barca que segundo São Mateus ainda se afunda, e segundo São Lucas se enche de peixes. Reconhecei assim os princípios dificultosos da Igreja e a sua posterior fecundidade” (Expositio Evangelii sec. Lucam, ad loc.). Cristo sobe para a barca para ensinar dali as multidões. De igual modo continua a ensinar da Igreja – a barca de Pedro – todas as gentes.

Cada um de nós pode ver-se representado nesta barca a que Cristo sobe. Externamente pode não mudar nada: “Que mudança há então? Há mudança na alma, porque nela entrou Cristo, tal como entrou na barca de Pedro. Abrem-se amplos horizontes, maior ambição de servir e um desejo irreprimível de anunciar a todas as criaturas as magnalia Dei (Act 2, 11), as coisas maravilhosas que o Senhor faz, se lho permitimos” (Amigos de Deus, n° 265).

4. “Quando acabou a Sua catequese, ordenou a Simão: Faz-te mais ao largo e lançai as vossas redes para pescar; é Cristo o dono da barca; é Ele quem prepara para a faina. Para isso é que veio ao mundo: para tratar de que os seus irmãos descubram o caminho da glória e do amor do Pai” (Amigos de Deus, n° 260). Para levar a cabo esta tarefa, o Senhor ordena a todos que lancem as redes, mas somente a Pedro que dirija a barca mar adentro.

Todo este passo faz referência, em certo modo, à vida da Igreja. Nela o Romano Pontífice, sucessor de Pedro, “é vigário de Jesus Cristo porque O representa na terra e faz as Suas vezes no governo da Igreja” (Catecismo Maior, n° 195). Cristo dirige-se também a cada um de nós para que nos sintamos urgidos a um trabalho apostólico audaz: “‘Duc in altum’ – Ao largo! – Repele o pessimismo que te torna cobarde. ‘Et laxate retia vestra in capturam’ – e lança as redes para pescar. Não vês que podes dizer, como Pedro: ‘in nomine tuo, laxabo rete’- Jesus, em Teu nome, procurarei almas?” (Caminho, n° 792).

“Se cedesses à tentação de perguntar a ti mesmo: quem me manda a mim meter-me nisto?, teria de responder-te: manda-to, pede-to o próprio Cristo. A messe é grande e os operários são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe (Mt IX, 37-38). Não digas, comodamente: eu para isto não sirvo; para isto já há outros. Se tu pudesses falar assim, todos podiam dizer a mesma coisa.

O pedido de Cristo dirige-se a todos e a cada um dos cristãos. Ninguém está dispensado: nem por razões de idade, nem de saúde, nem de ocupação. Não há desculpas de nenhum género. Ou produzimos frutos de apostolado ou a nossa fé será estéril” (Amigos de Deus, n° 272).

5. Perante a ordem de Cristo, Simão expõe as suas dificuldades. “A resposta de Simão parece razoável. Costumavam pescar de noite, e precisamente aquela noite tinha sido infrutífera. Para que haviam de pescar de dia? Mas Pedro tem fé: Porém, sobre a Tua palavra, lançarei a rede. Resolve proceder como Cristo lhe sugeriu; compromete-se a trabalhar, fiado na Palavra do Senhor” (Amigos de Deus, n°261).

8. O desejo de Pedro não é que Cristo Se afaste dele, mas, por causa dos seus pecados, declara-se indigno de estar próximo do Senhor. O que disse Pedro recorda a atitude do Centurião que se confessa indigno de que Jesus entre na sua casa (Mt 8,8). A Igreja manda os seus filhos repetir estas mesmas palavras do Centurião antes de receberem a Santíssima Eucaristia. Como também indica a conveniência de manifestar externamente a reverência devida ao Sacramento no acto de comungar: Pedro ensina-nos com o seu gesto, ao prostrar-se diante do Senhor, que também os sentimentos internos de adoração a Deus se devem manifestar exteriormente.

11. A perfeição não consiste em deixar simplesmente todas as coisas, mas em deixá-las para seguir a Cristo. Isto é o que fizeram os Apóstolos: abandonam tudo para estarem disponíveis perante as exigências da vocação divina.

Devemos fomentar no nosso coração esta disponibilidade porque “Jesus não Se satisfaz ‘compartilhando’; quer tudo” (Caminho, n° 155).

Se falta a entrega generosa encontraremos muitas dificuldades para seguir a Jesus Cristo: “Desprende-te das criaturas até ficares despido delas. Porque – diz o Papa São Gregório – o demónio nada tem de seu neste mundo, e acode nu à contenda. Se vais, vestido, lutar com ele, em breve cairás por terra. Porque terá por onde apanhar-te” (Caminho, n° 149).

08.02.2016 – Mc 6, 53-56

53Feita a travessia, vieram para terra e atracaram em Genesaré. 54Apenas saídos da barca, logo O reconheceram 55e, percorrendo toda aquela região, começaram a trazer em maças os doentes para onde ouviam dizer que Ele estava. 56E onde quer que entrava, nas aldeias ou nas cidades ou nos campos, punham os enfermos nas praças e rogavam-Lhe que ao menos os deixasse tocar a franja do Seu manto. E quantos O tocavam ficavam curados.

Comentário

52. Os discípulos não acabam de entender os milagres de Jesus como sinais da Sua divindade. Assim acontece diante dos milagres da multiplicação dos pães e dos peixes (Mc 6, 33-44) e da segunda multiplicação dos pães (Mc 8, 17). Diante destas maravilhas sobrenaturais, os Apóstolos têm ainda o seu coração e a sua inteligência endurecidos; não chegam a descobrir em toda a sua profundidade o que Jesus lhes está a ensinar com os Seus feitos: que Ele é o Filho de Deus. Jesus Cristo é compreensivo e paciente com estes defeitos dos Seus discípulos: também não entenderão quando Jesus lhes falar da Sua própria Paixão (Lc 18, 34). O Senhor multiplicará os Seus ensinamentos e milagres para iluminar as inteligências dos discípulos, e mais tarde enviará o Espírito Santo, que lhes ensinará todas as coisas e lhes recordará os Seus ensinamentos (cfr Ioh 14,26).

São Beda o Venerável faz o seguinte comentário a todo o episódio (Mc 6, 45-52): «Em sentido místico, o trabalho dos discípulos a remar e o vento contrário assinalam os trabalhos da Igreja santa que, entre as vagas do mundo inimigo e a exalação dos espíritos imundos, se esforça por chegar ao descanso da pátria celeste. Com razão, pois, se diz que a barca estava no meio do mar e Ele só em terra, porque a Igreja nunca foi tão intensamente perseguida pelos gentios que parecesse que o Redentor a tivesse abandonado de todo. Mas o Senhor vê os Seus a lutar no mar e, para que não desfaleçam nas tribulações, fortalece-os com o seu olhar de misericórdia e algumas vezes livra-os do perigo com a Sua clara ajuda.» (In Marci Evangelium expositio, ad loc.).

09.02.2016 – Mc 7, 1-13

Ajuntaram-se depois à volta d’Ele os Fariseus e alguns Escribas vindos de Jerusalém. 2E, vendo alguns dos Seus discí­pulos a comer com as mãos profanas, isto é, sem as terem lavado; 3de facto, os Fariseus, como todos os Judeus, não comem sem ter lavado as mãos cuidadosamente, seguindo a tradição dos antigos; 4e, ao voltarem da praça, não comem sem se terem lavado; há ainda muitas outras cerimônias que observam por tradição, como abluções de copos e jarros e vasos de metal. 5Perguntaram-Lhe, pois, os Fariseus e os Escribas: Porque é que os Teus discípulos não se conformam com a tradição dos antigos e comem com as mãos profanas? 6Mas Ele disse-lhes: Bem profe­tizou Isaías de vós, hipócritas, como está escrito:

Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim.

7Em vão Me prestam culto, ensinando doutrinas que são preceitos humanos.

8Desprezando o mandamento de Deus, aferrais-vos à tradição dos homens, abluções de jarros e copos e fazeis muitas outras coisas semelhantes. 9E dizia-lhes: Vós violais lindamente o mandamento de Deus, para observar a vossa tradição. 10Com efeito, disse Moisés: «Honra teu pai e tua mãe», e: «Quem amaldiçoar pai ou mãe seja punido de morte». 11Vós, porém, dizeis: Ao homem que disser ao pai ou à mãe: tudo aquilo com que podia ajudar-te é «qorban», isto é, «oferenda», 12já lhe não permitis fazer nada em favor do pai ou da mãe, 13anulando assim o mandamento de Deus com a vossa tradição, por vós transmitida. E coisas como estas fazeis muitas.

Comentário

1-2. O lavar-se as mãos não era por meros motivos de higiene ou de urbanidade, mas tinha um significado religioso de purificação. Em Ex 30,17 ss. a Lei de Deus prescrevia a purificação dos sacerdotes antes das suas funções cultuais. A tradição judaica tinha-o ampliado a todos os israelitas para antes de todas as refeições, querendo dar a estas um significado religioso que se reflectia nas bênçãos com que começavam. A purificação ritual era símbolo da pureza moral com que uma pessoa deve apresen­tar-se diante de Deus (Ps 24,3 ss.; 51,4-9); mas os fariseus tinham conservado o meramente exterior. Por isso Jesus restitui o sentido genuíno destes preceitos da Lei, que tendem a ensinar a verdadeira adoração a Deus (cfr Ioh 4,24).

3-5. No texto vemos com clareza que boa parte dos destinatários imediatos do Evangelho de São Marcos eram cristãos procedentes do paganismo, que desconheciam os costumes dos Judeus. Por isso o Evangelista explica-lhes, com certo pormenor, alguns destes costumes para facilitar a compreensão do sentido dos acontecimentos e dos ensina­mentos da história evangélica.

De modo semelhante a pregação e ensino da Sagrada Escritura deve fazer-se de maneira que seja compreensível e acomodada às circunstâncias dos ouvintes. Por isso ensina o Concilio Vaticano II que «compete aos Bispos ensinar oportunamente os fiéis que lhes foram confiados no uso recto dos livros divinos, de modo particular do Novo Testamento, e sobretudo dos Evangelhos. E isto por meio de traduções dos textos sagrados, que devem ser acompanhadas às explicações necessárias e verdadeiramente suficientes, para que os filhos da Igreja se familiarizem dum modo seguro e útil com a Sagrada Escritura, e se penetrem do seu espírito.» (Dei Verbum, n. 25).

11-13. Sobre a explicação deste texto vid. a nota a Mt 15,5-6. Jesus Cristo, que é o intérprete autêntico da Lei, porque enquanto Deus é autor dela, esclarece o verdadeiro alcance do quarto mandamento perante as explicações errôneas da casuística judaica. Em muitas outras ocasiões Nosso Senhor corrigiu as interpretações erradas dos mestres judaicos. Assim acontece, por exemplo, quando recorda aquela frase do Antigo Testamento: «Ide e aprendei que sentido tem: Quero misericórdia e não sacrifício» (Os 6,6; 1 Sam 15,22; Eccli 35,4) que nos conservou São Mateus em 9,13.

10.02.2016 – Mt 6, 1-6.16-18

Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens, para serdes vistos deles. De outra sorte, não tereis recompensa junto do vosso Pai que está nos Céus.

2Portanto, quando deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipó­critas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados dos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. 3Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua esquerda o que faz a direita, 4para que a tua esmola fique secreta, e teu Pai, que vê em lugar secreto, te recompensará.

5E quando orardes, não sejais como os hipócritas que gostam de orar de pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. 6Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta à chave e ora a teu Pai que está em lugar secreto. E teu Pai que vê em lugar secreto, te recompensará.

«16E quando jejuais, não andeis tristes, como os hipócritas pois desfiguram o rosto, para mostrarem aos homens que jejuam. Em verdade vos digo que receberam já a sua recompensa. 17Tu, porém, quando jejuas, perfuma a cabeça e lava o rosto, 18para não mostrares aos homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está em lugar secreto, e teu Pai, que vê em lugar secreto, te recompensará.

Comentário

1-18 «Justiça»: Aqui quer dizer boas obras (cfr a nota a Mt 5,6). Nosso Senhor ensina com que espírito se hão-de fazer os actos de piedade pessoal. A esmola, o jejum e a oração constituíam os actos fundamentais da piedade individual no povo escolhido; daqui que se centre nesses três temas. Jesus Cristo, como quem tem a autoridade máxima, ensina que a verdadeira piedade deve viver-se com rectidão de intenção, em intimidade com Deus e fugindo da ostentação. Esta piedade, assim vivida, supõe um exercício da fé em Deus que os vê, e da esperança de que premiará os que vivem uma piedade sincera.

5-6. A Igreja, seguindo esta doutrina de Jesus, sempre nós ensinou a rezar desde crianças no nosso aposento. Esse «tu» do Senhor (v. 6) está a indicar inequivocamente a necessidade da oração pessoal; cada um, a sós com Deus, como um filho que fala com o Pai.

A oração pública em que participam todos os fiéis é santa e necessária; mas não pode nunca substituir este terminante preceito do Senhor; tu, no teu aposento, fechada a porta, ora a teu Pai.

O Concilio Vaticano II recolhe os ensinamentos e a prática da Igreja na sua Liturgia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte donde promana toda a sua força (…). A participação na sagrada Liturgia não esgota, todavia, a vida espiritual. O cristão, chamado a rezar em comum, deve entrar também no seu quarto para rezar a sós ao Pai, e até, segundo ensina o Apóstolo, deve rezar sem cessar (lThes 5,17) (Sacrosanctum Concilium, nn. 10.12).

A alma que realmente vive a sua fé cristã sabe que necessita de se retirar frequentemente para orar a sós com seu Pai Deus. Jesus, que nos dá este ensinamento acerca da oração, praticou-o na Sua vida terrena: o santo Evangelho refere-nos as muitas vezes que o Senhor Se retirava sozinho para orar: «Às vezes, passava a noite inteira ocupado em colóquio íntimo com o Pai. Como cativou os primeiros discípulos a figura de Cristo em oração!» (Cristo que passa n° 119)(cfr Mt 14, 23; Mc 1, 35; Lc 5, 16; etc.). Os Apóstolos seguiram o exemplo do Mestre, e assim vemos Pedro que sobe ao terraço da casa em que se aloja em Jope, para se retirar a orar a sós, e ali recebe uma revelação (cfr Act 10, 9-16). «A vida de oração tem de fundamentar-se, além disso, em pequenos espaços de tempo, dedicados exclusivamente a ‘estar com Deus. São momentos de colóquio sem ruído de palavras» (Cristo que passa, n° 119).

16-18. Partindo da prática tradicional do jejum, o Senhor inculca-nos o espírito com que devemos viver a necessária mortificação dos sentidos: temos de fazê-la sem ostentação, evitando o aplauso dos homens, discretamente; assim não poderão aplicar-se contra nós essas palavras de Jesus: «Já receberam a sua recompensa», pois seria um triste negócio. «O mundo só admira o sacrifício com espectáculo porque ignora o valor do sacrifício escondido e silencioso» (Caminho, nº185).

11.02.2016 – Lc 9, 22-25

O Filho do homem tem de sofrer muito, ser rejeitado por parte dos Anciãos, dos Sumos Sacer­dotes e dos Escribas, ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar.

23Então pôs-Se a dizer para todos: Se alguém quer vir após Mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me. 24Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por Minha causa, esse há-de salvá-la. 25De facto, que vantagem tem um homem em ganhar o mundo inteiro, se se perder a si mesmo ou causar a própria ruína?

22. O Senhor profetizou a Sua Paixão e Morte para facilitar a fé dos discípulos. Ao mesmo tempo manifesta a voluntariedade com que aceita os sofrimentos. «Cristo não quis glorificar-Se, mas desejou vir sem glória para padecer o sofrimento; e tu, que nasceste sem glória, queres glorificar-te? Pelo caminho que Cristo percorreu é por onde tu deves caminhar. Isto é reconhecê-Lo, isto é imitá-Lo tanto na ignomínia como na boa fama, para que te glories na Cruz, como Ele próprio Se glorificou. Tal foi o comportamento de Paulo e por isso se gloria ao dizer: ‘Longe de mim gloriar-me a não ser na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo’ (Gal 6,14)» (Expositio Evangelii sec. Lucam, ad loc).

23. «Cristo repete-o a cada um de nós, ao ouvido, inti­mamente: a Cruz de cada dia. Não só — escreve São Jerónimo — em tempo de perseguição ou quando se apresente a possibili­dade do martírio, mas em todas as situações, em todas as actividades, em todos os pensamentos, em todas as palavras, neguemos aquilo que antes éramos e confessemos o que agora somos, visto que renascemos em Cristo (Epístola 121,3) (…). Vedes? A cruz de cada dia. Nulla dies sine cruce, nenhum dia sem Cruz: nenhum dia que não carreguemos com a Cruz do Senhor, em que não aceitemos o Seu jugo» (Cristo que passa, nos 58 e 176). «E muito certo que aquele que ama os prazeres, que busca as suas comodidades, que foge das ocasiões de sofrer, que se inquieta, que murmura, que repreende e se impacienta porque a coisa mais insignificante não corre segundo a sua vontade e o seu desejo, tal pessoa, de cristão só tem o nome; somente serve para desonrar a sua religião, pois Jesus Cristo disse: aquele que queira vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias da vida, e siga-Me» (Sermões escolhidos, Quarta Feira de Cinzas).

A Cruz não só deve estar presente na vida de cada cristão, mas também em todas as encruzilhadas do mundo: «Que formosas essas cruzes no cimo dos montes, no alto dos grandes monumentos, no pináculo das catedrais!… Mas também é preciso inserir a Cruz nas entranhas do mundo. «Jesus quer ser levantado ao alto, aí: no ruído das fábricas e das oficinas, no silêncio das bibliotecas, no fragor das ruas, na quietude dos campos, na intimidade das famí­lias, nas assembleias, nos estádios… Onde quer que um cristão gaste a sua vida honradamente, aí deve colocar, com o seu amor, a Cruz de Cristo, que atrai a Si todas as coisas» (Via Sacra, XI, n° 3).

25. Esta afirmação categórica de Jesus ensina-nos a necessidade de fazer tudo tendo em vista a vida eterna; para ganhar esta bem podemos gastar a vida terrena. «É certo que nos é lembrado que de nada serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se a si mesmo se vem a perder. A expectativa da nova terra não deve, porém, enfraquecer, mas antes activar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa prefiguração do mundo futuro. Por conseguinte, embora o progresso terreno se deva cuidadosa­mente distinguir do crescimento do reino de Cristo, todavia, na medida em que pode contribuir para a melhor organi­zação da sociedade humana, interessa muito ao reino de Deus» (Gaudium et spes, n. 39).

12.02.2016 – Mt 9, 14-15

14Então acercam-se d’Ele os discípulos de João e perguntam: Porque é que nós e os Fariseus jejuamos com frequência e os Teus discípulos não jejuam? 15Disse-lhes Jesus: Podem acaso os convidados das bodas entris­tecer-se enquanto está com eles o esposo? Dias virão em que o esposo lhes será tirado, e então jejuarão.

Comentário

14-17. O interesse da questão que levanta este passo radica, não em saber que jejuns praticavam os judeus contemporâneos de Jesus, e em especial os fariseus e os discípulos de João Baptista, mas em Saber qual é a razão pela qual Jesus não obriga os Seus discípulos a tais jejuns. A resposta que dá aqui o Senhor, é, ao mesmo tempo, um ensinamento e uma profecia. O cristianismo não é um mero remendo no antigo traje do judaísmo. A redenção operada por Cristo implica uma total regeneração. O seu espírito é demasiado novo e pujante para ser amoldado às velhas ,formas penitenciais, cuja vigência caducava.

A história da Igreja primitiva ensina-nos até que ponto os costumes de alguns cristãos, procedentes do judaísmo, resistiam a entender a transformação operada por Jesus. É sabido que na época de Nosso Senhor dominava nas escolas judaicas uma complicadíssima casuística de jejuns, purificações etc., que afogavam a simplicidade da verda­deira piedade. As palavras de Jesus apontam para esta (Simplicidade de coração com que os Seus discípulos devem viver a oração, o jejum e a esmola (cfr Mt 6, 1-18 e notas correspondentes). Será a Igreja que, desde os tempos apostólicos, concretizará em cada época, com os poderes que Deus lhe deu, as formas de jejum, segundo este espírito do Senhor. 15. «Os convidados das bodas»: O texto original diz lite­ralmente «filhos da casa onde se celebram as bodas», que é uma expressão típica para designar os amigos mais íntimos do esposo. Deve sublinhar-se a marcada construção semítica da frase que o Evangelista conservou na sua fidelidade à expressão original de Jesus.

Por outro lado, esta «casa» a que alude Jesus Cristo tem um profundo sentido: há que pô-la em relação com a parábola dos convidados para as bodas (Mt 22, 1-14), e simboliza a Igreja como casa de Deus e Corpo de Cristo: «Moisés, na verdade, foi fiel em toda a casa de Deus, como servo, para dar testemunho de tudo o que se havia de anunciar. Cristo, porém, é fiel, como Filho, à frente da Sua própria casa, a qual somos nós, se conservarmos firmemente até ao fim a confiança e a esperança de que nos gloriamos» (Heb 3, 5-6).

A segunda parte do versículo alude à morte violenta do Senhor.

13.02.2016 – Lc 5, 27-32

27Depois disto, saiu, viu um publicano Chamamento chamado Levi, sentado ao posto de cobrança, e disse-lhe: Segue-Me. 28E ele, deixando tudo, levantou-se e seguiu-O. 29Ofereceu-Lhe Levi, em sua casa, um grande banquete, e havia grande número de publicanos e de outros, que estavam com eles à mesa. 30Os Fariseus e os seus Escribas murmuravam, dizendo aos discípulos: Por que motivo comeis e bebeis com os publicanos e peca­dores? 31Jesus tomou a palavra e disse-lhes: Não são os que têm saúde que precisam de médico, senão os doentes. 32Não foram os justos, mas os pecadores, que Eu vim chamar ao arrependimento.

Comentário

27-29. Levi, mais conhecido pelo nome de Mateus, res­ponde com generosidade e prontidão ao chamamento de Jesus. Para celebrar e agradecer a sua vocação dá um grande banquete. Este passo do Evangelho reflecte com clareza que a vocação é um grande bem do qual há que alegrar-se. Se nos fixássemos só na renúncia, no que há que deixar, e não no dom de Deus, no bem que vai fazer em nós e através de nós, poderia sobrevir o abatimento, como ao jovem rico que não quis deixar as suas riquezas e se afastou triste (Lc 18,18). Muito diferente é o comportamento de Mateus, e o dos Magos, que «ao verem a estrela se encheram de imensa alegria» (Mt 2,10), porque apreciaram mais adorar a Deus recém-nascido do que todos os esforços e incomodidades da viagem. Ver também as notas a Mt 9,9;9,10-11; 9,12;9,13 e Mc 2,14; 2,17.

32. Este modo de actuar do Senhor significa que o único título que temos para sermos salvos é reconhecermo-nos com simplicidade pecadores diante de Deus. «Porque Jesus não sabe que fazer da astúcia calculista, da crueldade dos corações frios, da formosura vistosa mas vã.

« Nosso Senhor ama a alegria dum coração moço, o passo simples, a voz sem falseie, os olhos limpos, o ouvido atento à sua palavra de carinho. E é assim que reina na alma» (Cristo que passa, n° 181).

14.02.2016 – Lc 4, 1-13

1Jesus, cheio do Espírito Santo, retirou-Se do Jordão e, no deserto, foi conduzido pelo Espírito 2durante quarenta dias, sendo tentado pelo Diabo. Nada comeu nesses dias e, quando eles terminaram, sentiu fome. 3Disse-Lhe o Diabo: Se és Filho de Deus, manda a esta pedra que se transforme em pão. 4Respondeu-lhes Jesus: Está escrito: Nem só de pão vive o homem. 5Levando-O para O alto, mostrou-Lhe num instante todos os reinos do Universo. – 6Dar-Te-ei todo este poderio e a sua glória – disse-Lhe o Diabo – porque me está entregue e o dou a quem quiser. 7Se Tu, pois, Te prostrares diante de mim, todo ele será Teu. 8Disse-lhe Jesus, em resposta: “Está escrito: Ao Senhor, teu Deus, é que hás-de adorar e só a Ele prestarás culto”. 911Levou-O ainda a Jerusalém, colocou-O sobre o pináculo do Templo e disse-Lhe: Se és Filho de Deus, atira-Te daqui abaixo, 10pois está escrito: Ordenará aos Seus Anjos que olhem por Ti, a fim de que eles Te guardem.

11E também: Nas mãos Te hão-de tomar, não vás bater com o Teu pé nalguma pedra. 12Disse-lhe Jesus, em resposta: Está decla­rado: Não tentarás ao Senhor, teu Deus. 13E, tendo esgotado toda a espécie de tentação, retirou-se o Diabo de junto d’Ele, até um certo tempo.

Comentário

1-13. Nas tentações do deserto intervém o diabo na vida de Jesus Cristo pela primeira vez e abertamente. O Senhor ia começar o Seu ministério público e, portanto, tratava-se de um momento particularmente importante da obra da Salvação.

«É uma cena cheia de mistério, que o homem em vão pretende entender – Deus que Se submete à tentação, que deixa atuar o Maligno… – mas que pode ser meditada, pedindo ao Senhor que nos faça compreender a lição nela contida» (Cristo que passa, n. 61).

Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, fez-Se semelhante a nós em tudo, exceto no pecado (cfr. Phil 2,7; Heb 2,17; 4,15), e submeteu-Se voluntariamente à tentação. «Ditosos de nós! – exclama São João B. Maria Vianney – que ventura para nós ter um Deus por modelo! Somos pobres? Temos um Deus que nasce num presépio, recostado num monte de palha. Somos desprezados? Temos um Deus que nisso nos leva a dianteira, que foi coroado de espinhos, investido de um vil manto de púrpura, e tratado como um louco. Atormentam-nos as penas e sofrimentos? Temos diante dos nossos olhos um Deus coberto de chagas, e que morre no meio de umas dores tais que escapam à nossa compreensão. Sofremos perseguições? Pois bem, como nos atreveremos a queixar-nos, quando temos um Deus que morre pelos Seus próprios verdugos? Finalmente, padecemos tentações do demônio? Temos o nosso amável Redentor que foi também tentado pelo demônio, e levado duas vezes por aquele espírito infernal; de maneira que em qualquer estado de sofrimentos, de penas ou de tentações em que nos achemos, temos sempre e em toda a parte o nosso Deus indo à nossa frente, e assegurando-nos a vitória quantas vezes a desejemos de veras» (Sermões escolhidos, Primeiro Domingo de Quaresma).

Jesus ensina-nos, portanto, que ninguém deve considerar-se seguro e isento de tentações; mostra-nos a maneira de as vencer e exorta-nos, por fim, a que tenhamos confiança na Sua misericórdia, já que Ele também experimentou as tentações (cfr. Heb 2,18).

Para uma explicação mais pormenorizada deste passo, cfr. as notas a Mt 4,3-11.

13. Nas tentações do Senhor estão resumidas todas as que podem acontecer ao homem: «Não diria a Sagrada Escritura, comenta São Tomás, que acabada toda a tentação ; o diabo se retirou d’Ele, se nas três não se achasse a matéria de todos os pecados. Porque a causa das tentações são as causas das concupiscências: o deleite da carne, o afã de glória e a ambição de poder» (Suma Teológica, III, q. 41, a. 4ad4).

Ao vencer todo o gênero de tentações, Jesus Cristo dá-nos exemplo de como temos de comportar-nos diante das insídias do demônio. Foi tentado como homem e como homem as superou: « Não agiu como Deus usando do Seu poder — de que, então, nos teria aproveitado o Seu exemplo?:—, mas, como homem, serviu-Se dos auxílios que tem em comum connosco» (Expositio Evangelii sec. Lucam, ad loc.).

Queria ensinar-nos os meios para vencer, o diabo: a oração, o jejum, a vigilância, não dialogar com a tentação, ter nos lábios as palavras de Deus na Escritura, e pôr a confiança no Senhor. Essas são as armas.

«Até um certo tempo», isto é, o da Paixão de Cristo. Na vida pública do Senhor aparece com frequência o diabo (cfr, p. ex., Mc 12,28), mas será no momento da Paixão — «esta é a vossa hora e o domínio das trevas» (Lc 22,53) — quando se manifesta claramente a sua actuação tentadora. Jesus Cristo adverte disso os Seus discípulos e assegura-lhes de novo a vitória (cfr Ioh 12;31; 14,30). Com a Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo o poder do demônio fica definiti­vamente aniquilado. E em virtude desta vitória podemos superar todas as tentações.

15.02.2016 – Mt 25, 31-46

31Quando vier o Filho do homem na sua majestade e todos os Anjos com Ele, então sentar-Se-á no Seu trono de glória, 32e com­parecerão perante Ele todas as gentes, e Ele separá-los-á uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, 33e porá as ovelhas à Sua direita e os cabritos à Sua esquerda. 34Dirá então o Rei aos da Sua direita: «Vinde benditos de Meu Pai, entrai na herança do Reino que vos está preparado desde o princípio do mundo; 35pois tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e agasalhastes-Me, 36andava nu e vestistes-Me, estava doente e visitastes-Me, estava no cárcere e fostes ver-Me. 37Então os justos responder-Lhe-ão: « Senhor, quando é que Te vimos com fome e Te demos de comer, ou com sede e Te demos de beber? 38Quando é que Te vimos peregrino e Te agasalhamos, ou nu e Te vestimos? 39Quando Te vimos doente ou no cárcere e Te fomos ver? 40E o rei responder-lhes-á: «Em verdade vos digo: Tudo o que fizestes a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes.» 41Então dirá aos da Sua esquerda: «Apartai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Demônio e seus Anjos, 42pois tive fome e não Me destes de comer, tive sede e não Me destes de beber; 43era peregrino e não Me agasalhastes, estava nu e não Me vestistes, doente e no cárcere e não Me visitastes.» 44Então responderão também eles: «Senhor, quando é que Te vimos com fome ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente ou no cárcere e não Te assistimos?» 45E Ele responder-lhes-á: «Em verdade vos digo: Tudo o que não fizestes a um destes mais pequeninos, nem a Mim o fizestes.(» 46E irão estes para o Suplício eterno; os justos, porém, para a Vida eterna.

Comentário

31-46. As três parábolas precedentes (Mt 24, 42-51; 25, 1-13 e 25, 14-30) terminam com o anúncio de um juízo rigoroso e definitivo. Contemplamos agora a cena grandiosa deste acto final, que fará entrar todas as coisas na ordem da justiça. A tradição crista dá-lhe o nome de Juízo Final, para o distinguir do juízo particular a que cada um deverá ser submetido imediatamente depois da morte. A sentença ditada no fim dos tempos não será senão a confirmação pública e solene da sorte cabida já a eleitos e réprobos.

Neste passo torna-se claro o ensino de algumas verdades fundamentais da nossa fé: 1) A existência de um juízo universal no fim dos tempos. 2) A identificação que Cristo faz de Si mesmo com a pessoa de qualquer necessitado: faminto, sequioso, nu, doente, encarcerado. 3) Finalmente, a realidade de um suplício eterno para os maus e de uma felicidade eterna para os justos.

31-33. Nos testemunhos dos Profetas e no Apocalipse representa-se o Messias, como os juízes, num trono. Assim virá Jesus no fim dos tempos, para julgar os vivos e os mortos.

A verdade do Juízo Universal, que consta já nos primeiros símbolos da Igreja, é um dogma de fé definido solenemente por Bento XII na Constituição Benedictus Deus, de 29 de Janeiro de 1336.

35-46. Todas as facetas enumeradas no passo — dar de comer, dar de beber, vestir, visitar — são obras de amor cristão quando ao fazê-las a estes «pequeninos» se vê neles o próprio Cristo.

Daqui a importância do pecado de omissão. O não fazer uma coisa que se deve fazer supõe deixar Cristo desprovido de tais serviços.

«É preciso reconhecer Cristo que nos sai ao encontro nos nossos irmãos, os homens. Nenhuma vida humana é uma vida isolada; entrelaça-se com as outras. Nenhuma pessoa é um verso solto; todos fazemos parte de um mesmo poema divino, que Deus escreve com o concurso da nossa liberdade» (Cristo que passa, nº 111).

Seremos julgados sobre o amor (cfr Avisos e sentenças espirituais, nº 57). O Senhor pedir-nos-á contas não só do mal que tenhamos feito mas, além disso, do bem que tenhamos deixado de fazer. Desta forma, os pecados de omissão aparecem em toda a sua gravidade, e o amor ao próximo no seu fundamento último: Cristo está presente no mais pequeno dos nossos irmãos.

Escreve Santa Teresa de Jesus: «Cá, só estas duas coisas nos pede o Senhor: amor de Sua Majestade e do próximo; é no que devemos trabalhar. Guardando-as com perfeição é como fazemos a Sua vontade… O sinal mais certo que, segundo o meu parecer, há de que guardamos estas duas coisas, é guardando bem a do amor do próximo; porque se amamos a Deus, não se pode saber, ainda que haja indícios grandes para entender que O amamos; mas o amor do próximo, sim. E estai certas que quanto mais vos vejais aproveitadas neste, mais o estais no amor de Deus; porque é tão grande o que Sua Majestade nos tem, que em paga do que temos ao próximo, fará que cresça o que temos a Sua Majestade por mil maneiras: nisto eu não posso duvidar» (Moradas, V, 3).

Pela parábola vemos com clareza que o cristianismo não pode ser reduzido a uma sociedade de mera beneficência. O que dá valor sobrenatural a toda a ajuda em favor do próximo é prestá-la por amor de Cristo, vendo-O a Ele no próprio necessitado. Por isso São Paulo afirma que «ainda que repartisse todos os meus bens…, se não tenho caridade, e nada me serve» (l Cor 13, 3). Errada será, portanto, qualquer interpretação deste ensinamento de Jesus sobre o Juízo Final que pretenda dar-lhe um sentido materialista, ou que confunda a mera filantropia com a autêntica caridade cristã.

40-45. O Concilio Vaticano II, ao explicar as exigências da caridade cristã, que dá sentido à chamada assistência social, diz: «Vindo a conclusões práticas e mais urgentes, o Concilio recomenda a reverência para com o homem, de maneira que cada um deve considerar o próximo, sem excepção, como um ‘outro eu’, tendo em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários para a levar dignamente, não imitando aquele homem rico que não fez caso algum do pobre Lázaro (cfr Lc 16, 18-31). Sobretudo «m nossos dias, urge a obrigação de nos tornarmos o próximo de todo e qualquer homem, e de o servir efectivamente quando vem ao nosso encontro — quer seja o ancião, abandonado de todos, ou o operário estrangeiro injustamente desprezado, ou o exilado, ou o filho duma união ilegítima que sofre injusta­mente por causa dum pecado que não cometeu, ou o indigente que interpela a nossa consciência, recordando a palavra do Senhor: ‘todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes» (Gandium et spes, n. 27).

46. A existência de um castigo eterno para os réprobos e de um prêmio eterno para os eleitos é um dogma de fé definido solenemente pelo Magistério da Igreja no IV Concilio de Latrão do ano 1215: «Jesus Cristo (…) há-de vir no fim do mundo, para julgar os vivos e os mortos, e dar a cada um segundo as suas obras, tanto aos réprobos como aos eleitos: todos eles ressuscitarão com os seus próprios corpos que agora têm, para receberem segundo as suas obras — boas ou más —: aqueles, com o diabo, castigo eterno; e estes, com Cristo, glória sempiterna».

16.02.2016 – Mt 6, 7-15

7E, na oração, não sejais palavrosos como os gentios, pois ima­ginam que hão-de ser ouvidos pela sua verbosidade. 8Não vos pareçais, pois, com eles, porque o vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes de Lho pedirdes. 9Vós, pois, orai assim:

Pai nosso que estás nos Céus, santificado seja o Teu nome.

10Venha o Teu Reino. Seja feita a Tua vontade, assim na Terra como no Céu.

11O pão nosso de cada dia nos dá hoje.

12E perdoa-nos as nossas dívidas, como também nós perdoamos aos nossos devedores.

13E não nos metas em tentação, Mas livra-nos do mal.»

14Porque, se vós perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará a vós. 15Se, porém, não perdoardes aos homens, nem o Pai celeste perdoará as vossas ofensas.

Comentário

7-8. Jesus corrige os exageros supersticiosos de crer que são necessárias longas orações para que Deus nos escute. A verdadeira piedade não consiste tanto na quantidade de palavras como na freqüência e no amor com que o cristão se volta para Deus nos acontecimentos, grandes ou pequenos, de cada dia. A oração vocal é boa e necessária, mas as palavras só têm valor enquanto exprimem o sentir do Coração.

9-13. O «Pai-nosso» é, sem dúvida, a página mais comentada de toda a fé. Os grandes escritores da Igreja deixaram-nos explicações cheias de piedade e sabedoria. Já os primeiros cristãos, «fiéis à recomendação do Salvador e seguindo os Seus divinos ensinamentos», centraram a sua oração nesta fórmula sublime e simples de Jesus. E também os últimos cristãos elevarão o seu coração para dizer pela última vez o Pai-nosso quando estiverem prestes a ser levados para o Céu. Entretanto, desde criança até que deixa este mundo, o Pai-nosso é a oração que enche de consolação e de esperança o coração do homem. Bem sabia Jesus Cristo a eficácia que ia ter esta oração Sua. Graças sejam dadas a Nosso Senhor porque a compôs para nós, e também aos Apóstolos por no-la terem transmitido, e às nossas mães porque no-la ensinaram nas nossas primeiras balbuciadelas. É tão importante esta oração dominical, que desde os tempos apostólicos foi utilizada como base da catequese cristã, juntamente com o Credo ou Símbolo da fé, o Decálogo e os Sacramentos. A vida de oração era ensinada aos catecúmenos comentando o Pai-nosso. E. daí este costume passou para os nossos catecismos.

Santo Agostinho diz que esta oração do Senhor é tão perfeita, que em poucas palavras compendia tudo o que o homem possa pedir a Deus (cfr Sermo 56). Normalmente distinguem-se nela uma invocação e sete pedidos: três relativos à glória de Deus e quatro às necessidades dos homens.

9. E grande consolação poder chamar «Pai nosso» a Deus. Se Jesus, o Filho de Deus, ensina os homens a que invoquem Deus como Pai é porque neles se dá esta realidade consoladora, a de ser e sentir-se filhos de Deus.

«O Senhor (…) não é um dominador tirânico, nem um juiz rígido e implacável: é nosso Pai. Fala-nos dos nossos pecados, dos nossos erros, da nossa falta de generosidade, mas é para nos livrar deles e nos prometer a Sua amizade e o Seu amor (…). Um filho de Deus trata o Senhor como Pai. Não servilmente, nem com uma reverência formal, de mera cortesia, mas cheio de sinceridade e de confiança» (Cristo que passa, nº64).

«Santificado seja o Teu nome»: Na Bíblia o nome equivale à própria pessoa. Aqui nome de Deus é o próprio Deus. Que sentido tem pedir que Deus seja santificado? Não pode sê-lo à maneira humana: afastando-se progressivamente do mal e aproximando-se do bem, visto que Deus é a própria santidade. Pelo contrário, Deus é santificado quando a Sua Santidade é reconhecida e honrada pelas Suas criaturas. Este é o sentido que tem o primeiro pedido do «Pai-nosso» (cfr Catecismo Romano, IV, 10).

10. «Venha o Teu Reino»: Chegamos aqui outra vez à idéia central do evangelho de Jesus Cristo: a vinda do Reino. O Reino de Deus identifica-se tão plenamente com a obra de Jesus Cristo, que o Evangelho é chamado indiferentemente evangelho de Jesus Cristo ou evangelho do Reino (Mt 9, 35). Sobre o conceito de Reino de Deus veja-se o comentário a Mt 3, 2; 4, 17. O advento do Reino de Deus é a realização do desígnio salvador de Deus no mundo. O Reino de Deus esta­belece-se em primeiro lugar no mais íntimo do homem, elevando-o à participação da própria vida divina. Esta elevação tem como que duas etapas: a primeira na terra, que se realiza pela graça; e a segunda, definitiva, na vida eterna, que será a plenitude da elevação sobrenatural do homem. Tudo isso exige de nós uma submissão espontânea, amorosa e confiada a Deus.

«Seja feita a Tua vontade»: Este terceiro pedido exprime um desejo duplo. Primeiro, a identificação do homem com a vontade de Deus, de modo rendido e incondicional; é a expressão do abandono nas mãos de seu Pai Deus. Segundo, o cumprimento daquela vontade divina, que reclama a livre cooperação humana. Este é o caso, por exemplo, da lei divina no aspecto moral, pela qual Deus manifesta a Sua vontade, mas sem a impor à força. Uma das manifestações da vinda do Reino de Deus é o cumprimento amoroso da vontade divina por parte do homem. A segunda parte da frase «assim na Terra como no Céu » quer dizer: assim como no céu os anjos e os santos estão totalmente identificados com a vontade de Deus, de modo semelhante se deseja que isso aconteça já aqui na terra.

A luta por cumprir a vontade de Deus é o sinal de que somos sinceros quando pronunciamos as palavras: «venha o Teu Reino». Porque diz o Senhor: «Nem todo o que Me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus, mas o que faz a vontade de Meu Pai que está nos Céus» (Mt 7, 21). «Quem de veras tiver dito esta palavra: ‘Fiat voluntas tua’, tem de ter feito tudo, com a determinação pelos menos» (Caminho de perfeição, cap. 63, nº2).

11. Neste quarto pedido, o que ora tem em conta em primeiro lugar as necessidades da vida presente. A importância desta súplica consiste em que os bens mate­riais, necessários para viver, são declarados lícitos. Exprime-se um profundo sentido religioso da manutenção da vida: o que o discípulo de Cristo alcança com o seu próprio trabalho também o deve implorar de Deus e recebê-lo como um dom divino; Deus é quem mantém a vida. Ao pedir a Deus o próprio sustento e considerar que este vem das mãos divinas, o cristão afasta de si a angustiosa preocupação pelas neces­sidades materiais. Jesus quer que pecamos não a riqueza ou o gozo desses bens, mas a posse austera do necessário. Daí que, tanto em Mateus como em Lucas (Lc 11, 2), se fale do alimento suficiente para cada dia. O quarto pedido dirige-se, pois, a uma moderação do alimento e dos bens necessários, afastada dos extremos de opulência e miséria, como já tinha ensinado Deus no AT:

«Não me dês pobreza nem riqueza, concede-me o pão que me é necessário, para que, saciado, não te renegue, e não diga: ‘Quem é o Senhor’?

Ou, empobrecido, não roube e não profane o nome do meu Deus» (Prv 30,8-9)

Os Santos Padres interpretaram o pão que aqui se pede, não só como o alimento material, mas também viram significada a Santíssima Eucaristia, sem a qual não pode viver o nosso espírito.

Segundo o Catecismo Romano (cfr IV, 13, 21), as razões para que se chame à Eucaristia pão nosso quotidiano são: Que cada dia se oferece a Deus na Santa Missa, e que devemos recebê-lo dignamente, sendo possível todos os dias, segundo Aconselho de Santo Ambrósio: «Se o pão é diário, por que o recebes tu apenas uma vez por ano? Recebe todos os dias o que todos os dias te é proveitoso; vive de modo que diariamente sejas digno de o receber» (De Sacramentis, V, 4).

12. «Dívida» tem aqui claramente o sentido de pecado. Com efeito, no dialecto aramaico do tempo de Jesus utilizava-se a mesma palavra para designar ofensa ou dívida. No Quinto pedido reconhecemos, pois, a nossa situação de Devedores por termos ofendido a Deus. Na revelação do AT é frequente a recordação da condição pecadora do homem. Inclusive os «justos» são também pecadores. Reconhecer os nossos pecados é o princípio de toda a conversão a Deus. Não SC trata apenas de reconhecer antigos pecados nossos, mas de confessar a nossa actual condição de pecadores. Esta mesma condição faz-nos sentir a necessidade religiosa de recorrer ao único que pode remediá-la, Deus. Daqui a conveniência de rezar insistentemente, com a oração do Senhor, para alcançar da misericórdia divina uma e outra vez o perdão dos nossos pecados.

A segunda parte deste pedido é uma chamada séria a perdoar aos nossos semelhantes: como nos atrevemos a pedir perdão a Deus, se não estamos dispostos a perdoar aos outros! O cristão deve ser consciente das exigências desta oração, que há-de rezar com todas as suas consequências: não querer perdoar a outro é condenar-se a si mesmo (vide nota a Mt 5, 23-24 e 18,21-35).

13. «E não nos deixes cair na tentação»: «Não pedimos aqui para não sermos tentados, porque a vida do homem na terra é milícia (Iob 7, 1)… Que é, pois, o que aqui pedimos? Que, sem nos faltar o auxílio divino, não consintamos por erro nas tentações, nem cedamos a elas por desalento; que esteja pronta em nosso favor a graça de Deus, a qual nos console e fortaleça quando nos faltem as próprias forças» (Catecismo Romano, IV, 15,14).

Reconhecemos nesta súplica do Pai-nosso a nossa debi­lidade para lutar contra a tentação só com as forças humanas. Isto deve levar-nos a recorrer com humildade a Deus, para receber d’Ele a fortaleza necessária. Porque «muito forte é Deus para livrar-te de tudo, e pode fazer-te mais bem do que mal todos os demônios. Deus quer somente que te fies d’Ele, que te arrimes a Ele, que confies n’Ele e desconfies de ti mesmo, e desta maneira há-de ajudar-te e com a Sua ajuda vencerás todo o inferno que venha contra ti. Desta firme esperança não te deixes cair, porque Se irritará com isso, nem porque os demônios sejam muitos e muitas as tentações e bravas e de muitas maneiras. Está sempre arrimado a Ele, porque se este arrimo e força não tens com o Senhor, logo cairás e temerás qualquer coisa» (Sermones, 9, Domingo I de Quaresma).

«Mas livra-nos do mal»: Neste pedido, que de algum modo resume todos os anteriores, rogamos ao Senhor que nos livre de tudo aquilo que o nosso inimigo faz contra nós para perder-nos; e não nos poderemos livrar dele se o próprio Deus não nos livra, concedendo a Sua assistência aos nossos rogos.

Igualmente poderia traduzir-se por «mas livra-nos do Mau», quer dizer, do maligno, do demônio, que é a origem, em última instância, de todos os nossos males.

Ao fazermos este pedido podemos estar seguros de ser ouvidos, porque Jesus Cristo, estando para sair deste mundo, rogava ao Pai pela salvação dos homens com estas palavras: «Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno» (Ioh 17,15).

14-15. São Mateus conserva nos vv. 14 e 15 como um comentário de Nosso Senhor à quinta petição do Pai-nosso.

Que maravilha é Deus que perdoa! Mas se Deus, três vezes Santo, tem misericórdia do pecador, quanto mais nós, pecadores, que sabemos por experiência própria da miséria do pecado, devemos perdoar aos outros. Não há ninguém perfeito na terra. Assim como Deus nos ama, mesmo com os nossos defeitos, e nos perdoa, nós também devemos amar os outros, mesmo com os seus defeitos, e perdoar-lhes. Se esperamos amar os que não têm defeitos, nunca amaremos ninguém. Se esperamos que se corrijam ou se desculpem os outros primeiro, quase nunca perdoaremos. Mas então, também nós não seremos perdoados. «De acordo: aquela pessoa tem sido má contigo. — Mas não tens sido tu pior com Deus?» (Caminho. n° 686). Perdoando àqueles que nos têm ofendido tornamo-nos, pois, semelhantes ao nosso Pai Deus: «No facto de amar os inimigos, vê-se claramente certa semelhança com o nosso Pai Deus, que reconciliou consigo o gênero humano, que era muito inimigo e contrário Seu, redimindo-o da condenação eterna por meio da morte do Seu Filho» (Catecismo Romano, IV, 14,19).

17.02.2016 – Lc 11, 29-32

29Como as multidões tivessem afluído em massa, começou a dizer: Esta geração é uma geração perversa: pede um sinal, mas não lhe será dado nenhum sinal, a não ser o sinal de Jonas. 30Pois, do mesmo modo que Jonas foi um sinal para os Ninivitas, assim o será também o Filho do homem para esta geração. 31A rainha do Sul há-de surgir na altura do Juízo com os homens desta geração e con­dená-los-á, porque veio dos confins da Terra para ouvir a sabedoria de Salomão, e está aqui algo mais do que Salomão. 32Os homens de Nínive hão-de ressuscitar na altura do Juízo com esta geração e hão-de condená-la, porque, à pregação de Jonas, fizeram peni­tência, e está aqui algo mais do que Jonas.

Comentário

29-32. Jonas foi o profeta que levou os ninivitas à penitência porque na sua pregação e nas suas obras, na sua pessoa e na sua vida, reconheceram o sinal de um enviado de Deus (cfr a nota a Mt 12,41-42).

18.02.2016 – Mt 7, 7-12

7Pedi e dar-se-vos-a, buscai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á. 8Porque, todo o da oração que pede recebe, e o que busca encontra e ao que bate, abrir-se-á.

9Haverá entre vós alguém que dê uma pedra ao filho, se ele lhe pedir pão? 10E lhe dê uma serpente, se ele lhe pedir peixe? 11Se, pois, vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos-, quanto mais vosso Pai que está nos Céus dará coisas boas aos que Lhe pedirem?

12Tudo aquilo, pois, que quereis que os A outros vos façam a vós, fazei-o também vós a eles, porque esta é a Lei e os Profetas.

Comentário

7-11. O Mestre ensina de diversas maneiras a eficácia da oração. A oração é uma elevação da mente para Deus para O adorar, dar-Lhe graças e pedir-Lhe o que necessitamos (cfr Catecismo Maior, nº255). Jesus insiste na oração de petição, que é o primeiro movimento espontâneo da alma que reconhece Deus como seu Criador e Pai. Como criatura de Deus e como Seu filho, o homem necessita pedir-Lhe humil­demente todas as coisas.

Ao falar da eficácia da oração, Jesus não faz restrições: «Todo o que pede, recebe», porque Deus é nosso Pai. E São Jerônimo comenta: «Está escrito: a todo o que pede se dá; logo, se a ti não se te dá, não se te dá porque não pedes; portanto, pede e receberás» (Comm. in Matth., 7). Não obstante, apesar de a oração ser de si infalível, por vezes não obtemos o que queríamos. Santo Agostinho diz que a nossa oração não é escutada porque pedimos «aut mali, aut male, aut mala». «Mali»: porque somos maus, porque as nossas disposições pessoais não são boas; «male»: porque pedimos mal, sem fé, sem perseverança, sem humildade; «mala»: porque pedimos coisas más, quer dizer, o que não nos convém, o que pode causar-nos dano (cfr De civitate Dei, XX, 22 e 27; De Senti. Dom. in monte, H, 27,73). Em última análise, a oração não é eficaz quando não é verdadeira oração. Portanto: «Faz oração. Em que negócio humano te podem dar mais garantias de êxito?» (Caminho, n° 96).

12. A sentença de Jesus, chamada «regra de ouro», oferece um critério prático para reconhecer o alcance das nossas obrigações e da nossa caridade para com os outros. Mas uma consideração superficial correria o risco de mudá-lo num móbil egoísta do nosso comportamento: não se trata, evidentemente, de um do ut dês («dou-te para que me dês»), lhas de fazer o bem aos outros sem pôr condições, como em boa lógica as não pomos no amor a nós mesmos. Esta regra prática ficará completada com o «mandamento novo» de Jesus Cristo (Ioh 13, 34), onde nos ensina a amar os outros como Ele mesmo nos amou.

19.02.2016 – Mt 5, 20-26

20Porque Eu vos digo que, se a vossa justiça não sobrepujar a dos Escribas e Fariseus, não entra reis no Reino dos Céus.

21Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás, e quem matar será réu perante o tribunal. 22Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que se irar contra seu irmão, será réu perante o tribunal. E quem chamar a seu irmão «imbecil», será réu perante o Sinédrio. E quem lhe chamar «doido», será réu da Geena do fogo. 23Portanto, se ao apresentares a tua oferenda ao altar, aí te recordares que teu irmão tem algo contra ti, 24deixa aí a tua oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, depois vem e apresenta a tua oferenda. 25Põe-te de acordo com o teu adversário, enquanto estás com ele no caminho. Não seja caso que o adver­sário te entregue ao juiz, e o juiz ao guarda, e sejas metido na prisão. 26Em verdade te digo: não sairás de lá, enquanto não pagares o último ceitil.

Comentário

20. «Justiça»: Veja-se nota a Mt 5, 6. O versículo vem esclarecer o sentido dos precedentes. Os escribas e os fariseus tinham chegado a deformar o espírito da Lei, ficando na observância externa e ritual da mesma. Entre eles o cumpri­mento exacto e minucioso, mas externo, dos preceitos tinha-se transformado numa garantia de salvação do homem diante de Deus: « se eu cumpro isto sou justo, sou santo e Deus tem de me salvar». Com este modo de conceber a justificação já não é Deus no fundo quem salva, mas é o homem quem se salva pelas obras externas. A falsidade de tal concepção fica patente com a afirmação de Cristo, que poderia exprimir-se com estes termos: para entrar no Reino dos Céus é necessário superar radicalmente a concepção da justiça ou santidade a que tinham chegado os escribas e os fariseus. Por outras palavras, a justificação ou santificação é uma graça de Deus, com a qual o homem só pode colaborar secundariamente pela sua fidelidade a essa graça. Noutros lugares estes ensinamentos ficarão ainda mais claramente explicados por Jesus (cfr Lc 18, 9-14, parábola do fariseu e do publicano). Também dará lugar a Uma das grandes batalhas doutrinais de São Paulo perante os «judaizantes» (veja-se Gal 3 e Rom 2-5).

21-26. Nestes versículos temos um exemplo concreto de como Jesus leva à sua plenitude a Lei de Moisés, explicando profundamente o sentido dos mandamentos desta.

22. Jesus ao falar em primeira pessoa («Eu, porém, digo-vos») expressa que a Sua autoridade está por cima da de Moisés e dos Profetas; quer dizer: Ele tem autoridade divina. Nenhum homem poderia falar com essa autoridade,

«Imbecil»: Muitíssimas versões deste passo mantiveram a transcrição da palavra original aramaica: «Raça», pronunciada por Cristo. Não é fácil de dar uma tradução exacta. O termo «raça» equivale ao que hoje entendemos por néscio, estúpido, imbecil. Era sinal entre os Judeus de um grande desprezo, que muitas vezes se manifestava não com palavras, mas com a acção de cuspir no chão.

«Doido», que outras versões traduzem por «fátuo», «louco», «renegado», etc., era um insulto ainda maior que «raça»: referia-se à perda do sentido moral e religioso, até ao ponto da apostasia.

Nosso Senhor indica neste texto três faltas que podemos cometer contra a caridade, nas quais se pode apreciar uma gradação, que vai desde a irritação interna até ao maior dos insultos. A propósito deste passo comenta Santo Agostinho que se devem observar três graus de faltas e de castigos. O primeiro, entrar em cólera por um movimento interno do coração, ao que corresponde o castigo do juízo; o segundo, dizer alguma palavra de desprezo, que leva consigo o castigo do Conselho; o terceiro, quando deixando-nos levar pela ira até à obcecação, injuriamos despiedadamente os nossos irmãos, que é castigado com o fogo do inferno (cfr De Semi. Dom. in monte II, 9).

«Geena do fogo», frase que na linguagem judaica daqueles tempos significava o castigo eterno, o fogo do inferno.

Daqui a gravidade dos pecados externos contra a caridade: murmuração, injúria, calúnia, etc. Não obstante, devemos dar-nos conta de que estes brotam do coração; o Senhor chama a atenção em primeiro lugar para os pecados internos: rancor, ódio, etc., para fazer ver que aí está a raiz, e quanto nos convém refrear os primeiros movimentos da ira.

23-24. O Senhor encontra-Se com umas práticas judaicas do Seu tempo, e em tal ocasião dará uma doutrina de valor moral altíssimo e perene. Naturalmente que no cristianismo estamos noutra situação diferente das práticas cultuais judaicas. Para nós o mandato do Senhor tem uns caminhos determinados por Ele mesmo. Em concreto, na Nova e definitiva Aliança, fundada por Cristo, reconciliar-nos é apro­ximar-nos do sacramento da Penitência. Neste os fiéis «obtêm da misericórdia de Deus o perdão da ofensa feita a Ele, e ao mesmo tempo reconciliam-se com a Igreja, à qual feriram pelo pecado» (Lumen gentium, n. 11).

Do mesmo modo, no Novo Testamento, a oferenda por excelência é a Eucaristia. Ainda que à Santa Missa se deva assistir sempre nos dias de preceito, é sabido que para a recepção da Sagrada Comunhão se requer como condição imprescindível estar em graça de Deus.

Nosso Senhor não quer dizer nestes versículos que se tenha de antepor o amor do próximo ao amor de Deus. A caridade tem uma ordem: amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Este é o maior e primeiro mandamento (cfr Mt 22, 37-38). O amor ao próximo, que é o segundo mandamento em importância (cfr Mt 22, 39), recebe o seu sentido do primeiro. Não é concebível fraternidade sem paternidade. A ofensa contra a caridade é, antes de mais, ofensa a Deus.

20.02.2016 – Mt 5, 43-48

43Ouvistes que foi dito: Ama o teu próximo e odeia o teu inimigo. 44Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; 45para serdes filhos de vosso Pai que está nos Céus, o qual faz nascer o sol sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos. 46Porque, se amais os que vos amam, que recompensa mereceis? Porventura não fazem o mesmo também os publicanos? 47E se saudais só os vossos irmãos, que fazeis nisso de extraordinário? Porventura não fazem o mesmo também os gentios? 48Sede, pois, vós perfeitos como é perfeito vosso Pai celeste.

Comentário

43. A primeira parte do versículo «ama p teu próxi­mo», está em Levítico 19, 18. A segunda parte «odeia o teu inimigo», não vem na Lei de Moisés. As palavras de Jesus, contudo, aludem a uma interpretação generalizada entre os rabinos da Sua época, os quais entendiam por próximo só os Israelitas. O Senhor corrige esta falsa interpretação da Lei, entendendo por próximo todo o homem (cfr a parábola do bom samaritano em Lc 10,25-37). 43-47. O passo recapitula os ensinamentos anteriores. O Senhor chega a estabelecer que o cristão não tem inimigos pessoais. O seu único inimigo é o mal em si, o pecado, mas não o pecador. Esta doutrina foi levada à prática pelo próprio Jesus Cristo com os que O crucificaram, e é a que segue todos os dias com os pecadores que se rebelam contra Ele e O desprezam. Por isso os santos seguiram o exemplo do Senhor, como o primeiro mártir Santo Estêvão, que orava pelos que lhe estavam a dar a morte. Chegou-se ao cume da perfeição cristã: amar e rezar até pelos que nos persigam e caluniem.

Este é o distintivo dos filhos de Deus.

46. «Publicanos»: Eram os cobradores de impostos. O Império Romano não tinha funcionários próprios para este serviço, mas entregava-o a determinadas pessoas do país respectivo. Estas podiam ter empregados subalternos (daí que por vezes se fale de «chefe de publicanos», como é o caso dê Zaqueu; cfr Lc 19, 2). A quantidade genérica do imposto para cada região era determinada pela autoridade romana. Os publicanos cobravam uma sobretaxa, da qual viviam, e que se prestava a arbitrariedade; por isso normalmente eram Odiados pelo povo. Além disso, no caso dos Judeus, agregava-se a nota infamante de espoliar o povo eleito em favor dos gentios. 48. O versículo 48 resume, de algum modo, todos os ensinamentos do capítulo, incluídas as Bem-aventuranças. Em sentido estrito é impossível que a criatura tenha a perfeição de Deus. Portanto, o Senhor quer dizer aqui que a perfeição divina deve ser o modelo para o qual há-de tender o fiel cristão, sabendo que há uma distância infinita em relação ao seu Criador. Isto, porém, não rebaixa nada a força deste mandamento, mas, pelo contrário, ilumina-o. Juntamente com a exigência deste mandato de Jesus Cristo, há que considerar a magnitude da graça que promete, para que sejamos capazes de tender, nada menos, que à perfeição divina. De qualquer modo a perfeição que havemos de imitar não se refere ao poder e à sabedoria de Deus, que superam por completo as nossas possibilidades, mas nesta passagem, pelo contexto, parece referir-se sobretudo ao amor e à miseri­córdia. Neste sentido São Lucas refere-nos as seguintes palavras do Senhor: «Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36; cfr nota a Lc 6, 20-49,).

Como se vê, a «chamada universal à santidade» não é uma sugestão, mas um mandamento de Jesus Cristo: «Tens obrigação de te santificar. — Tu, também. — Quem pensa que é tarefa exclusiva de sacerdotes e religiosos?

A todos, sem excepção, disse o Senhor: ‘Sede perfeitos, como Meu Pai Celestial é perfeito’» (Caminho, nº 291). Doutrina que o Concilio Vaticano II sanciona no cap. 5 da Const. Lumen gentium, n. 40, donde tiramos estas palavras: «Jesus, mestre e modelo divino de toda a perfeição, pregou a santidade de vida, de que Ele é autor e consumador, a todos e a cada um dos Seus discípulos, de qualquer condição: ‘sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito’ (…). É, pois, claro a todos, que os cristãos de qualquer estado ou condição de Vida, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. Na própria sociedade terrena, esta santidade promove um modo de vida mais humano».

21.02.2016 – Lc 9, 28b-36

Tomou Jesus consigo a Pedro, João e Tiago e subiu ao monte, para orar. 29Quando estava em oração, tornou-se-Lhe diferente o aspecto do rosto, e o vestuário branco refulgente. 30Estavam dois homens a conversar com Ele, os quais eram Moisés e Elias, 31que, aparecendo gloriosos, falavam da Sua morte que ia dar-se em Jerusalém. 32Ora Pedro e os companheiros estavam carregados de sono. Mas, despertando, viram a Sua glória e os dois homens que estavam com Ele. “Quando estes iam a separar-se d’Ele, disse Pedro a Jesus: Mestre, é bom nós estarmos aqui; vamos fazer três tendas, uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias — pois não sabia o que estava a dizer. 34Enquanto dizia isto, formou-se uma nuvem que os foi co­brindo com a sua sombra; e os discípulos ficaram cheios de medo, quando entraram na nuvem. 35Fez-se então ouvir da nuvem uma voz, que dizia: Este é o Meu Filho eleito: escutai-O. 36E, quando a voz se fez ouvir, Jesus ficou só. Eles guardaram silêncio e, naqueles dias, a ninguém contaram nada do que tinham visto.

Comentário

28-36. Jesus Cristo com a Sua Transfiguração fortalece a fé dos Seus discípulos mostrando na Sua humanidade um indício da glória que ia ter depois da Ressurreição. Quer que entendam que a Sua Paixão não será o fim, mas o caminho para chegar à glória. «Para que alguém se mantenha no recto caminho é preciso que conheça previamente, ainda que seja de modo imperfeito, o termo do seu caminhar: do mesmo modo um arqueiro não lança uma flecha se antes não conhece o alvo ao qual apontar (…). E isto é tanto mais necessário, quanto mais difícil e árduo for o caminho e fatigante a viagem, e alegre pelo contrário o fim» (Suma Teológica, III, q. 45, a.l).

Com este milagre da Transfiguração Jesus Cristo mostra também um dos dotes dos corpos gloriosos: a claridade, «pela qual brilharão como o sol os corpos dos santos; pois isto afirma o nosso Salvador no Evangelho de São Mateus: ‘Então os justos brilharão como o sol no Reino de Seu Pai’ (Mt 13,43); e para que ninguém duvidasse disso o esclareceu com o exemplo da Sua Transfiguração. A este dote chama o Apóstolo umas vezes glória e outras claridade. ‘Transformará o corpo da nossa baixeza conforme ao corpo da Sua clari­dade’ (Phil 3,21); e noutra parte: ‘Semeia-se em estado de vileza; ressuscitará com glória’ (1Cor 15,43). O povo de Israel viu também alguma imagem desta glória no deserto, quando o rosto de Moisés resplandecia pelo colóquio e pela presença de Deus, de tal modo que os filhos de Israel não podiam fixar nele o seu olhar (Ex 34, 29; 2Cor 3,7). A claridade é certo resplendor que, procedente da suma felicidade da alma, redunda no corpo como uma certa comunicação a este da felicidade de que a alma goza (…). Mas não deve crer-se que deste dote participem todos na mesma proporção (…). Porque, embora todos os corpos dos santos venham a ser igualmente impassíveis, contudo, não terão o mesmo resplendor; pois, como diz o Apóstolo, uma é a claridade do sol, outra a claridade da lua e outra a das estrelas, e inclusivamente há diferença na claridade entre umas estrelas e outras; assim sucederá na ressurreição dos mortos (l Cor 15,41-42)» (Catecismo Romano, 1,12,13). Vid. também o comentário a Mt 17,1-13; 17,5; 17,10-13; e a Mc 9,2-10; 9,7.

31. « Falavam da sua morte »: A Neo-vulgata diz: Falavam da Sua saída deste mundo, isto é, da morte de Cristo. Também pode entender-se da Ascensão do Senhor.

35. « Escutai-O »: Tudo o que Deus quer dizer à humani­dade o disse através de Cristo, ao chegar a plenitude dos tempos (cfr Heb 1,1). «Pelo que, explica São João da Cruz, o que agora quisesse consultar Deus, ou quisesse alguma visão ou revelação, não só cometeria uma estupidez, mas faria agravo a Deus, não pondo os olhos totalmente em Cristo, sem querer alguma outra coisa ou novidade. Porque lhe poderia responder Deus desta maneira, dizendo: ‘Se te falei já de todas as coisas na Minha Palavra, que é o Meu Filho, e não tenho outra, que te posso Eu agora responder ou revelar que seja mais que isso? Põe os olhos apenas n’Ele, porque n’Ele to disse e revelei, e acharás n’Ele mais ainda do que pedes e desejas (…); ouvi-O a Ele, porque já não tenho mais fé que revelar, nem mais coisas que manifestar’» (Subida ao Monte Carmelo, liv. 2, cap. 22, n° 5).

22.02.2016 – Mt 16, 13-19

13Jesus, ao ouvir isto, retirou-Se dali numa Multiplicação barca, a sós, para um lugar deserto. O povo, porem, soube-o e das cidades foi, por terra, em Seu seguimento. 14Ao desembarcar, viu uma grande multidão: condoeu-Se dela e curou-lhe os enfermos. 15Sobre a tarde, vieram ter com Ele os discípulos e disseram-Lhe: Este lugar é deserto, e a hora já passou. Despede, pois, as turbas para que vão às aldeias comprar comestíveis. 16Mas Jesus disse-lhes: Não precisam de ir, dai-lhes vós mesmos de comer. 17Tornaram-Lhe eles: Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes. 18Disse Ele: Trazei-Mos cá. 19E deu ordem para que a multidão se sentasse sobre a relva. Depois tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu e pronunciou a fórmula da bênção, partiu os pães e deu-os aos discípulos, e os discípulos às turbas.

Comentário

14-21. Devia ser em plena Primavera porque a erva estava verde (Mc 6,40; Ioh 6,10). Os pães no próximo Oriente costumam ter a forma de tortas delgadas, que se partem facilmente com as mãos e se distribuem aos comensais. Uma e outra coisa costumava fazê-las o pai de família ou o que presidia à mesa. O Senhor segue aqui este mesmo costume. O milagre deste relato consiste em que os pedaços de pão se multiplicam nas mãos de Jesus. Logo, os discípulos distribuiam-nos à multidão.

Outra vez mais sobressai a maneira de actuar do Senhor: busca a livre cooperação do homem; no momento de fazer o milagre quer que os discípulos levem os pães e os peixes, e ofereçam a sua própria actividade.

23.02.2016 – Mt 23, 1-12

Então Jesus falou assim ao povo e aos Seus discípulos: 2Na cadeira de Moisés, sentaram-se os Escribas e Fariseus. 3Fazei, portanto, e guardai tudo quanto vos disserem, mas não imiteis as suas obras, porque dizem e não fazem. 4Atam cargas pesadas e incomportaveis e põem-nas às costas da gente, mas eles nem com o dedo as querem mover. 5Fazem todas as suas obras para serem vistos dos homens. Por isso alargam as filactérias e alongam as franjas. 6Cobiçam os primeiros lugares nos banquetes, as pri­meiras cadeiras nas sinagogas 7e as sauda­ções nas praças, e que os homens lhes chamem: «rabi». 8Vós, porém, não queirais que vos chamem « rabi», pois um só é o vosso Mestre, e todos vós sois irmãos. 9E não chameis a ninguém vosso «pai» sobre a terra, pois um só é o vosso Pai, o do Céu. 10Nem queirais que vos chamem «directores», porque um só é o vosso Director, Cristo. 11O maior entre vós seja vosso servidor, 12pois quem se exaltar a si mesmo, será humilhado, e quem a si mesmo se humilhar, será exaltado.

Comentário

1-39. Todo este capítulo é uma dura acusação contra os escribas e fariseus, ao mesmo tempo que mostra a dor e a compaixão de Jesus pelas gentes simples, mal conduzidas por aqueles, «mal tratadas e abatidas como ovelhas sem pastor» (Mt 9,36). No discurso podem distin­guir-se três partes: na primeira (vv. 1-12) denuncia os seus principais vícios e corrupções; na segunda (vv. 13-36) encara-se com eles e dirige-lhes os célebres «ais», que vêm a ser como o reverso das bem-aventuranças do capítulo quinto: impossível será entrar no Reino dos Céus — ou o seu contrário, escapar da condenação do fogo — a quem não mude radicalmente de atitude e de conduta; na terceira parte (vv. 37-39) está a queixa contra Jerusalém: Jesus sente intimamente dor pelos males que acarreta ao povo a cegueira orgulhosa e a dureza de coração dos escribas e fariseus.

2-3. Moisés entregou ao povo a Lei que tinha recebido de Deus. Os escribas, que pertenciam na sua maioria ao partido dos fariseus, tinham a seu cargo ensinar ao povo a Lei mosaica: por isso se dizia deles que estavam sentados na cátedra de Moisés. O Senhor reconhece a autoridade com que os escribas e fariseus ensinam, enquanto transmitem a Lei de Moisés; mas previne o povo e os Seus discípulos acerca deles, distinguindo entre a Lei que eles leem e ensinam nas sinagogas, e as interpretações práticas que eles mostram com a sua vida. Anos mais tarde São Paulo — fariseu, filho de fariseu —, manifestará acerca dos seus antigos colegas um juízo idêntico ao de Jesus: «Tu, porém, que ensinas outros, como não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve roubar, roubas? Tu, que dizes que não se deve cometer adultério, comete-lo? Tu, que abominas os ídolos, saqueias os templos? Tu, que te glorias na Lei, será que não desonras Deus ao transgredir a Lei? Pois, como diz a Escritura, por vossa culpa é blasfemado o nome de Deus entre os gentios» (Rom2,21-24).

5. As filactérias eram fitas ou bandas em que escreviam palavras da Sagrada Escritura. Os israelitas punham-nas sobre a fronte e atadas aos braços. Para se distinguirem dos outros e parecer mais religiosos e observantes os fariseus levavam-nas mais largas. As franjas eram orlas de cor jacinto, postas nos remates das suas capas. Os fariseus em sinal de ostentação levavam-nas mais longas.

8-10. Jesus Cristo vem ensinar a Verdade; mais ainda, Ele é a Verdade (Ioh 14, 6). Daí a singularidade e o caracter único da sua condição de Mestre. «Toda a vida de Cristo foi um ensino contínuo: o Seu silêncio, os Seus milagres, os Seus gestos, a Sua oração, o Seu amor ao homem, a Sua predilecção pelos pequenos e pelos pobres, a aceitação do sacrifício total na Cruz pela salvação do mundo, a Sua Ressurreição são a actuação da Sua palavra e o cumprimento da revelação. De sorte que para os cristãos o Crucifixo é uma das imagens mais sublimes e populares de Jesus que ensina.

«Estas considerações, que estão na linha das grandes tradições da Igreja, reafirmam em nós o fervor por Cristo, o Mestre que revela Deus aos homens e o homem a si mesmo; o Mestre que salva, santifica e guia, que está vivo, que fala, que exige, que comove, que orienta, julga, perdoa, caminha diariamente connosco na história; o Mestre que vem e virá na glória» (Catechesi tradendae, n. 9).

11. Perante a apetência de honras que mostravam os fariseus, o Senhor insiste em que toda a autoridade, e com mais razão se é religiosa, deve ser exercida como um serviço aos outros. E, como tal, não pode ser instrumentalizada para satisfazer a vaidade ou a avareza pessoais. O ensino de Cristo é absolutamente claro: «O maior entre vós seja vosso servidor».

12. O espírito de orgulho e de ambição é incompatível com a condição de discípulo de Cristo. Com estas palavras o Senhor insiste na exigência da verdadeira humildade, como condição imprescindível para O seguir. Os verbos em voz passiva «será humilhado» e «será exaltado» têm como sujeito agente a Deus: Ele mesmo humilhará os soberbos e exaltará os humildes. Neste sentido a Epístola de São Tiago ensina que «Deus resiste aos soberbos e dá a Sua graça aos humildes» (lac 4, 6). E no cântico do Magnificat, a Virgem Santíssima exclama que o Senhor «derrubou os poderosos do seu trono e exaltou os humildes» (Lc 1,52).

24.02.2016 – Mt 20, 17-28

17Ao subir para Jerusalém, tomou Jesus os doze discípulos à parte e disse-lhes no caminho: 18Olhai, subimos a Jerusalém, e o Filho do homem será entregue aos Príncipes dos sacerdotes e Escribas, e eles condená-Lo-ão à morte. 19E hão-de entregá-Lo aos gentios, para O escarnecerem e flagelarem e crucificarem; mas ao terceiro dia ressus­citará.

20Aproximou-se então d’Ele a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos, e prostrou-se por terra para Lhe pedir alguma coisa. 21Disse-lhe Ele: Que queres? E ela: Ordena que estes meus dois filhos se sentem um à Tua direita, outro à Tua esquerda no Teu Reino. 22Respondeu Jesus e disse: Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu hei-de beber? Responderam-Lhe: Podemos. 21Diz-lhes Ele: O Meu cálice bebê-lo-eis; agora o sentar-se à Minha direita ou à Minha esquerda, não Me toca a Mim concedê-lo, mas é para quem Meu Pai o tem preparado.

24Ao ouvirem isto, os dez indignaram-se contra os dois irmãos. 25Jesus, porém, chamou-os e disse: Sabeis que os soberanos das nações as tratam como senhores, e os grandes lhes fazem sentir o seu poder. 26Entre vós não é assim. Pelo contrário, o que entre vós quiser ser grande, faça-se vosso servo. 27E quem quiser entre vós ser o primeiro, faça-se vosso escravo. 28Do mesmo modo que o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida em redenção por muitos.

Comentário

18-19. O Senhor volta a profetizar aos Apóstolos a Sua morte e ressurreição. A perspectiva de julgar o mundo (cfr Mt 19, 28) podia deslumbrá-los até pensarem num reino mes­siânico temporal, num caminho fácil, em que estivesse ausente a ignomínia da Cruz.

Cristo, além disso, prepara o ânimo dos Apóstolos para que quando chegue esta prova recordem que Ele a tinha profetizado, e esta recordação os ajude a superar o escândalo que padeceriam, O anúncio da Paixão é descrito com pormenor.

«Tudo o que as diversas manifestações de piedade nos trazem à memória nestes dias — diz Monsenhor Escrivá de Balaguer referindo-se à Semana Santa — se encaminha decerto para a Ressurreição, que é o fundamento da nossa fé, como escreve S. Paulo (cfr 1Cor 15,14). Mas não percorramos este caminho demasiado depressa; não deixemos cair no esquecimento alguma coisa muito simples, que por vezes parece escapar-nos: não poderemos participar da Ressur­reição do Senhor se não nos unirmos à Sua Paixão e à Sua Morte (cfr Rom 8,17). Para acompanhar Cristo na Sua glória no final da Semana Santa, é necessário que penetremos antes no Seu holocausto e que nos sintamos uma só coisa com Ele, morto no Calvário» (Cristo que passa, n.°95).

20. Os filhos de Zebedeu são Tiago Maior e João. A sua mãe, Salomé, pensando na instauração iminente do reino temporal do Messias, solicita para os filhos os dois lugares mais influentes. Cristo repreende-os porque desconhecem a verdadeira natureza do Reino dos Céus, que é espiritual, e porque ignoram a verdadeira natureza do governo na Igreja que ia fundar, que é serviço e martírio. «Se pensas que, ao trabalhar por Cristo, os cargos são algo mais do que cargas, quantas amarguras te esperam!» (Caminho, nº950).

22. «Beber o cálice» significa sofrer perseguições e martírio pelo seguimento de Cristo. «Podemos»: Os filhos de Zebedeu responderam audazmente que sim; esta generosa expressão evoca aquela outra que escreveria anos mais tarde São Paulo: «Tudo posso n’Aquele que me conforta» (Phil 4,13).

23. «O Meu cálice bebê-lo-eis»: Tiago Maior morrerá mártir em Jerusalém pelo ano 44 (cfr Act 12,2); e João, depois de ter sofrido cárcere e açoites em Jerusalém (cfr Act 4, 3; 5, 40-41), padecerá longo desterro na ilha de Patmos (cfr Apc l, 9).

Destas palavras do Senhor deduz-se que o acesso aos lugares de governo na Igreja não deve ser fruto da ambição e das intrigas humanas, mas consequência da vocação divina. Cristo, que tinha os olhos postos em cumprir a Vontade de Seu Pai Celeste, não ia distribuir os cargos levado por considerações humanas, mas segundo os desígnios do Pai.

26. O Concilio Vaticano II insiste de uma maneira notável neste aspecto de serviço que a Igreja oferece ao mundo, e que os cristãos hão-de apresentar como testemunho da sua identidade cristã: «Este sagrado Concilio, procla­mando a sublime vocação do homem, e afirmando que nele está depositado um germe divino, oferece ao gênero humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de instaurar a frater­nidade universal que a esta vocação corresponde. Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente este objectivo: continuar, sob a direcção do Espírito Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido» (Gaudium et spes, n. 3; cfr Lumen gentium, n. 32; Ad gentes, n. 12; Unitatis redintegratio, n. 7).

27-28. Jesus Cristo apresenta-Se a Si mesmo como exemplo que deve ser imitado por aqueles que exercem a autoridade na Igreja. Ele, que é Deus e Juiz que há-de vir a julgar o mundo (cfr Phil 2,5-11; Ioh5,22-27; Act 10,42; Mt 28, 18), não Se impõe, mas serve-nos por amor até ao ponto de entregar a vida por nós (cfr Ioh15,1.3): esta é a Sua forma de ser o primeiro. Assim o entendeu São Pedro, que exorta os presbíteros a que apascentem o rebanho de Deus a eles confiado, não como dominadores sobre a herança, mas servindo de exemplo (cfr 1Pet 5, 1-3); e São Paulo, que não estando submetido a ninguém, se faz servo de todos para a todos ganhar (cfr 1Cor 9, 19 ss; 2Cor 4, 5).

O «serviço» de Cristo à humanidade vai encaminhando para a salvação. Com efeito, a frase «dar a vida em redenção por muitos» não deve ser interpretada como uma restrição da vontade salvífica universal de Deus. «Muitos» aqui não se contrapõe a «todos» mas a «um»: Um é o que salva e a todos é oferecida a salvação.

25.02.2016 – Lc 16, 19-31

19Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e todos os dias se dava esplêndidas festas. 20Jazia ao seu portão, Lázaro coberto de chagas, um pobre chamado Lá­zaro, 21que bem desejava saciar-se do que caía da mesa do rico. E até os cães lhe vinham lamber as chagas. 22Ora o pobre morreu e foi levado pelos Anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. 23E, no outro mundo, achando-se em tormentos, ergueu os olhos e viu de longe a Abraão, e Lázaro em seu seio. 24Então ergueu a voz e disse: «Pai Abraão, tem dó de mim e envia Lázaro para que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque sou atormentado nestas chamas». 25« Filho — respondeu Abraão — lembra-te que recebeste os teus benefícios em vida, e Lázaro de igual modo os infortúnios. E agora, ele é aqui consolado, enquanto tu és ator­mentado. 26Além de tudo isso, entre nós e vós cava-se um grande abismo, de modo que não podem os que quiserem, passar daqui para junto de vós, nem atravessar daí para junto de nós». 27Ele retorquiu: «Peço-te então, ó pai, que o mandes à minha casa paterna, pois tenho cinco irmãos; 28que os previna, para não virem, eles também, para este lugar de tormento». 29Disse-lhe Abraão: «Têm Moisés é os Profetas; que os oiçam!». 30Ele, porém, replicou: «Não, pai Abraão, mas, se alguém do seio dos mortos for ter com eles, hão-de arrepender-se». 31Este respondeu-lhe: «Uma vez que não ouvem Moisés e os Pro­fetas, tampouco se hão-de convencer, se res­suscitar alguém dentre os mortos».

Comentário

19-31. A parábola dissipa dois erros: o dos que negavam a sobrevivência da alma depois da morte e, portanto, a retribuição ultraterrena, e o dos que interpretavam a pros­peridade material nesta vida como prêmio da rectidão moral, e a adversidade, pelo contrário, como castigo. Perante este duplo erro a parábola deixa claros os seguintes ensinamentos: que imediatamente depois da morte a alma é julgada por Deus de todos os seus actos — juízo particular —, recebendo o prêmio ou o castigo merecidos; que a Revelação divina é, de per si, suficiente para que os homens creiam no mais além.

Noutra ordem de ideias, a parábola ensina também a dignidade de toda a pessoa humana pelo tacto de o ser, independentemente da sua posição social, econômica, cul­tural, religiosa, etc. E o respeito por essa dignidade leva consigo a ajuda ao desprotegido de. bens materiais ou espiri­tuais: «Vindo a conclusões práticas e mais urgentes, o Con­cilio recomenda a reverência para com o homem, de ma­neira que cada um deve considerar o próximo, sem excepção, como um outro eu, tendo em conta, antes de mais, a sua vida e os meios necessários para a levar dignamente, não imitando aquele homem rico que não fez caso algum do pobre Lázaro» (Gaudium et spes, n 27).

Outra consequência prática do respeito pelo homem é a correcta distribuição de bens materiais, buscando ao mesmo tempo os recursos suficientes para defender a vida do homem, inclusivamente a do que ainda não nasceu, como exortava Paulo VI diante da Assembleia Geral das Nações Unidas: «Na vossa assembleia, inclusive no que diz respeito ao problema da natalidade, é onde o respeito pela vida deve encontrar a sua mais alta profissão e a sua mais razoável defesa. A vossa tarefa é actuar de tal sorte que o pão seja suficientemente abundante na mesa da humanidade e não favorecer um controle artificial dos nascimentos, que seria irracional, tendo em vista diminuir o número de comensais no banquete da vida» (Discurso Nações Unidas, n° 6).

21. A alusão aos cães não parece um pormenor de alívio para o pobre Lázaro, mas antes uma intensificação das suas dores, em contraste com os prazeres do rico avarento, porque os cães, entre os judeus, eram animais impuros e, portanto, ordinariamente não se domesticavam.

22-26. Os bens terrenos, como também os sofrimentos, são efêmeros: acabam-se com a morte, com a qual também termina o tempo de provação, a nossa possibilidade de pecar ou de merecer; e começa imediatamente o gozo do prêmio ou o sofrimento do castigo, ganhos durante a prova da vida. Segundo definiu o Magistério da Igreja, as almas de todos os que morrem em graça de Deus, imediatamente depois da sua morte, ou da purificação para os que dela precisarem, estarão no Céu: «Cremos na vida eterna. Cremos que as almas de todos aqueles que morrem na graça de Cristo — tanto as que ainda devem ser purificadas pelo fogo do Purgatório como as que imediatamente depois de se separarem do corpo, como o bom ladrão, são recebidas por Jesus no Paraíso — constituem o Povo de Deus depois da morte, a qual será destruída totalmente no dia da Ressurreição em que estas almas se unirão com os seus corpos» (Credo do Povo de Deus, n° 28).

A expressão « seio de Abraão» indica o lugar ou estado em «que residiam as almas dos santos antes da vinda de Cristo Senhor Nosso, onde, sem sentir dor alguma, sustentados com a esperança ditosa da redenção, desfrutavam de pací­fica morada. A estas almas piedosas que estavam à espera do Salvador no seio de Abraão, libertou Cristo Nosso Senhor ao baixar aos infernos» (Catecismo Romano, l, 6,3).

22. «Morreram os dois, o rico e o mendigo, e foram levados diante de Abraão e fez-se o juízo do seu comporta mento. E a Escritura diz-nos que Lázaro recebeu consolação e, pelo contrário, ao rico foram dados tormentos. Será que o rico foi condenado porque tinha riquezas, porque abundava em bens da terra, porque ‘vestia de púrpura e linho e celebrava cada dia esplêndidos banquetes’? Não, quero dizer que não foi por esta razão. O rico foi condenado porque não ajudou o outro homem. Porque nem sequer se deu conta de Lázaro, da pessoa que se sentava ao seu portal e ansiava pelas migalhas da sua mesa. Em nenhum lugar condena Cristo a mera posse de bens terrenos enquanto tal. Pelo contrário, pronuncia palavras muito duras contra os que utilizam os bens egoisticamente, sem se fixarem nas necessi­dades dos outros (…).

«A parábola do rico avarento e do pobre Lázaro deve estar sempre presente na nossa memória; deve formar-nos a consciência. Cristo pede abertura para os irmãos e irmãs necessitados; abertura de parte do rico, do opulento, do que está abastado economicamente; abertura para o pobre, o subdesenvolvido, o desprotegido. Cristo pede uma abertura que é mais que atenção benigna, ou mostras de atenção ou meio-esforço, que deixam o pobre tão desprotegido como antes ou inclusivamente mais (…).

«Não podemos permanecer ociosos desfrutando as nossas riquezas e liberdade se nalgum lugar o Lázaro do século XX está à nossa porta. À luz da parábola de Cristo, as riquezas e a liberdade criam responsabilidades especiais. As riquezas e a liberdade criam uma obrigação especial. E, por isso, em nome da solidariedade que nos vincula a todos numa única humanidade, proclamo de novo a dignidade de toda a pessoa humana; o rico e Lázaro, os dois, são seres humanos, criados os dois à imagem e semelhança de Deus, redimidos os dois por Cristo por grande preço, pelo preço do ‘precioso Sangue de Cristo’ .(1Pet 1,19)» (Homília Yankee Stadium).

24-31. O diálogo entre o rico avarento e Abraão é uma encenação didática para gravar nos ouvintes os ensina­mentos da parábola. Assim, em sentido estrito, no inferno não pode haver compaixão alguma em favor do próximo, já que ali só reina a lei do ódio contra tudo e contra todos. «Quando Abraão disse ao rico: ‘Entre vós e nós existe um abismo (…)’, manifestou que depois da morte e ressurreição não haverá lugar para penitência alguma. Nem os ímpios se arrependerão e entrarão no Reino, nem os justos pecarão e baixarão para o inferno. Este é um abismo intransponível» (A frates, Demonstratio, 20; De Sustentatione egenorum, 12). Por isso se compreendem as seguintes palavras de São João Crisóstomo: «Rogo-vos e peco-vos e, abraçado aos vossos pés, suplico-vos que, enquanto gozemos desta pequena res­piração da vida, nos arrependamos, nos convertamos, nos tornemos melhores, para que não nos lamentemos inutil­mente como aquele rico quando morrermos e o pranto não nos traga remédio algum. Porque ainda que tenhas um pai ou um filho ou um amigo ou qualquer outro que tenha influência diante de Deus, todavia, ninguém te livrará, sendo como são os teus próprios factos que te condenam» (Hom. sobre 1Cor).

26.02.2016 – Mt 21, 33-43.45-46

33Ouvi outra parábola: Havia um proprie­tário que plantou uma vinha, e rodeou-a com uma cerca, e cavou nela um lagar, e levantou uma torre; depois arrendou-a a uns lavradores e partiu para longe. 34Quando se homicidas aproximou a época das colheitas, mandou os seus servos aos lavradores para receber os frutos. 35Os lavradores, porém, pegaram nos servos e espancaram a um, mataram a outro e a outro apedrejaram. 36Tornou ele a mandar outros servos em maior número que os primeiros. E eles trataram-nos do mesmo modo. 37Por fim mandou-lhes o seu próprio filho, dizendo: «Hão-de respeitar o meu filho». 38Mas os lavradores, ao verem o filho, disseram entre si: «Este é o herdeiro, vamos matá-lo e ficaremos com a sua herança!»39E sem mais, pegaram nele, lançaram-no fora da vinha e mataram-no. 40Ora, quando vier o dono da vinha, que fará àqueles lavradores?

41Responderam-Lhe: Fará morrer de má morte os malvados e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe paguem os frutos a seu tempo.42Disse-lhes Jesus: Nunca lestes nas Escrituras:

«A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser pedra angular?

Isto é obra do Senhor e é maravilha a nossos olhos?»

43Por isso vos digo que vos será tirado o Reino de Deus e dado a um povo que produza os seus frutos.

45Ouvindo as Suas parábolas, os Príncipes dos sacerdotes e os Fariseus compreenderam que falava deles 46e queriam prendê-Lo, mas tiveram medo do povo, que O tinha por profeta.

Comentário

33-46. Esta parábola, tão importante, completa a anterior. A parábola dos dois filhos limitava-se a mostrar o facto da indocilidade de Israel; a dos vinhateiros homicidas projecta a sua luz sobre o castigo consequente.

O Senhor compara Israel com uma vinha escolhida, provida segundo o uso oriental da sua cerca, do seu lagar, com a sua torre de vigilância algo elevada, onde se coloca o guardião encarregado de proteger a vinha contra os ladrões e os chacais. Deus não regateou nada para cultivar e embelezar a sua vinha. Os vinhateiros, na parábola, são colonos; o dono é Deus, e a vinha é Israel (Is 5,3-5; ler 2,21; Ioel 1, 7).

Os vinhateiros a quem Deus tinha entregado o cuidado do Seu povo representam os sacerdotes, escribas e anciãos. A ausência do dono dá a entender que Deus confiou realmente Israel aos seus chefes; e daqui nasce a sua responsabilidade e contas exigidas pelo dono da vinha.

O dono envia os seus servos de vez em quando para receber os seus frutos. Esta foi a missão dos profetas. O segundo envio dos servos para reclamar o que deviam ao seu dono, e que corre a mesma sorte que o primeiro, é uma alusão aos maus tratos infligidos aos profetas de Deus pelos reis e sacerdotes de Israel (Mt 23, 37; Act 7, 42; Heb 11, 36-38). Finalmente enviou-lhes o Seu Filho, pensando que, sem dúvida, O respeitariam. Aqui é assinalada a diferença entre Jesus e os profetas, que eram servos, mas não «o Filho»: a parábola refere-se à filiação transcendente e única que expressa a divindade de Jesus Cristo.

A intenção perversa dos vinhateiros de assassinar o filho herdeiro, para ficarem eles com a herança, é o desatino com que os chefes da sinagoga esperam ficar como donos indiscutíveis de Israel ao matarem Cristo (Mt 12, 14: 26, 4). Não pensam no castigo: a ambição cega-os. Então «lançaram-no fora da vinha e mataram-no»: referência à crucifixão que teve lugar fora dos muros de Jerusalém.

Jesus Cristo profetiza o castigo que Deus imporá aos malvados: dar-lhes-á morte, e arrendará a vinha a outros. Estamos diante de uma profecia da máxima importância: São Pedro repetirá mais tarde diante do sinédrio: «a pedra que os construtores rejeitaram, esta veio a ser pedra angular» (Act 4, 11; 1Pet 2, 4). A pedra é Jesus de Nazaré, mas os arquitectos de Israel, os que constroem e governam o povo, não quiseram usá-la na construção. Por isso, por causa da sua infidelidade, o Reino de Deus será transferido para outro povo, os gentios, que saberão dar a Deus os frutos que Ele espera da sua vinha (cfr Mt 3,8-10; Gal 6, 16).

É necessário assentar sobre esta pedra para estar solidamente edificado. E infeliz o que tropece nela (Mt 12,30; Lc 2,34). Aqueles judeus primeiro e depois todos os inimigos de Cristo e da Igreja comprová-lo-ão com dura experiência (Is 8,14-15).

Os cristãos de todos os tempos deverão considerar esta parábola como uma exortação a construir com fidelidade sobre Cristo, para não reincidir no pecado daquela geração judaica. Ao mesmo tempo deve encher-nos de esperança e de segurança: ainda que o edifício, que é a Igreja, pareça fender-se em algum momento, a sua solidez está assegurada, porque tem Cristo como pedra angular.

 

27.02.2016 – Lc 15, 1-3.11-32

Ora os publicanos e os pecadores aproximavam-se todos de Jesus para O ouvirem. 2E os Fariseus e os Escribas murmuravam entre si, dizendo: Este homem acolhe os pecadores e come com eles. 3Pro­pôs-lhes então a seguinte parábola: Certo homem tinha dois filhos. 12E o mais novo dentre eles disse ao pai: «Pai, dá-me a parte que me cabe da fortuna». E ele repartiu-lhes os bens. 13Alguns dias depois, o filho mais novo, reunindo tudo, ausentou-se para uma região longín­qua e por lá esbanjou os seus bens, vivendo dissipadamente. 14Depois de haver gastado tudo, houve uma grande fome por aquela região, e ele começou a passar privações. 15Foi então ligar-se a um dos habitantes daquela região, o qual o mandou para os seus campos guardar porcos. 16Bem desejava ele encher o ventre com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. 17Então caiu em si e disse: «Quantos jornaleiros de meu pai têm pão com fartura, e eu morro aqui à fome! 18Vou ter com meu pai e digo-lhe: Pai, pequei contra o Céu e para contigo. 19Já não sou digno de cha­mar-me teu filho. Trata-me como um dos teus jornaleiros». 20Partiu, pois, e foi ter com o pai.

Estando ele ainda longe, viu-o o pai, e encheu-se de compaixão e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, beijando-o. 21Disse-lhe o filho: «Pai, pequei contra o Céu e para contigo. Já não sou digno de chamar-me teu filho». 22Disse o pai aos seus criados: «Trazei depressa o fato melhor e vesti-lho; ponde-lhe um anel na mão, e calçado nos pés. “Trazei o vitelo gordo, matai-o; e comamos em festa, 24porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e encontrou-se». E começaram com a festa.

25Ora o filho mais velho estava no campo. Quando, à volta, se aproximou da casa, ouviu música e danças. 26Chamando um dos moços, pediu-lhe informações sobre o que era aquilo. 27«É que chegou teu irmão — lhe disse este — e teu pai matou o vitelo gordo, porque de regresso o encontrou com saúde.» 28Ele ficou irritado e não queria entrar. O pai veio cá fora instar com ele. 29Mas ele, em resposta, disse ao pai: «Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e tu nunca me deste um cabrito, para eu fazer uma festa com os meus amigos! 30Mas, quando chegou esse teu filho, que te consumiu a fortuna com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo». 31O pai respondeu-lhe: «Filho, tu sempre estás comigo e tudo o que é meu é teu. 32Mas nós tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e encontrou-se».

Comentário

1-32. Com as Suas obras Jesus manifesta a misericórdia divina: aproxima-Se dos pecadores para os converter. Os escribas e os fariseus, que desprezam os pecadores, não compreendem esse comportamento de Jesus, e murmuram d’Ele; será ocasião para que Nosso Senhor pronuncie as parábolas da misericórdia. «O Evangelista que trata de modo particular estes temas do ensino de Cristo é São Lucas, cujo Evangelho mereceu ser chamado ‘o Evan­gelho da misericórdia’» (Dives in misericórdia, n 3).

Neste capítulo São Lucas recolhe três destas parábolas, em que de modo gráfico Jesus descreve a infinita e paterna! misericórdia de Deus, e a Sua alegria pela conversão do pecador.

O Evangelho ensina que ninguém está excluído do per dão, e que os pecadores podem chegar a ser filhos que­ridos de Deus mediante o arrependimento e a conversão. E é tal o desejo divino de que os pecadores se convertam que as três parábolas terminam repetindo, a modo de estribilho, a alegria grande no Céu por cada pecador arrependido.

1-2. Não é esta a primeira vez que publicanos e peca­dores se aproximam de Jesus (cfr Mt 9,10). A pregação do Senhor atraía pela sua simplicidade e pelas suas exigências de entrega e de amor. Os fariseus tinham-Lhe inveja porque a gente ia atrás d’Ele (cfr Mt 26,3-5; Ioh 11,47). Essa atitude farisaica pode repetir-se entre os cristãos: uma dureza de juízo tal que não aceite que um pecador, por maiores que tenham sido os seus pecados, possa converter-se e ser santo; uma cegueira de mente tal que impeça reconhecer o bem que fazem os outros e alegrar-se disso. Nosso Senhor já vai ao encontro desta atitude errada quando responde aos Seus discípulos que se queixam de que outros expulsem demônios em Seu nome: «Não lho proibais, pois não há ninguém que faça um milagre em Meu nome e possa a seguir falar mal de Mim» (Mc 9,39). Igualmente São Paulo alegrava-se de que i. outros anunciassem Cristo, e inclusivamente passava por alto que o fizessem por interesse, desde que Cristo fosse pregado (cfr Phil 1,17-18).

11. Estamos perante uma das parábolas mais belas de Jesus, em que nos é ensinado uma vez mais que Deus é um Pai bom e compreensivo (cfr Mt 6,8; Rom 8,15; 2 Cor 1,3). O filho que pede a parte da sua herança é figura do homem que se afasta de Deus por causa do pecado. Nesta parábola «a essência da misericórdia divina — embora no texto origi­nal não seja usada a palavra ‘misericórdia’ — aparece de modo particularmente límpido» (Dives in misericórdia, n 5).

12-13. «Este filho, que recebe do pai a parte da herança que lhe toca e deixa a casa paterna para esbanjar essa herança numa terra longínqua ‘vivendo dissolutamente’, em certo sentido é o homem de todos os tempos, a começar por aquele que foi o primeiro a perder a herança da graça e da justiça original. Neste ponto a analogia é muito vasta. Indirectamente a parábola estende-se a todas as rupturas da aliança de amor: a toda a perda da graça, e todo o pecado» (Dives in misericórdia, n 5).

14-15. Neste momento da parábola vemos as tristes consequências do pecado. Com essa fome fala-se-nos da ansiedade e do vazio que sente o coração do homem quando está longe de Deus. Com a servidão do filho pródigo é-nos descrita a escravidão a que fica submetido quem pecou (cfr Rom 1,25:6.6; Gal 5,1). Assim, pelo pecado o homem perde a liberdade dos filhos de Deus (cfr Rom 8,21; Gal 4,31; 5,13) e submete-se ao poder de Satanás.

17-21. A recordação da casa paterna e a segurança no amor do pai fazem que o filho pródigo reflicta e decida pôr-se a caminho. «De certo modo, a vida humana é um constante regresso à casa do Pai, um regresso mediante a contrição, a conversão do coração que significa o desejo de mudar, a decisão firme de melhorar a nossa vida e que, portanto, se manifesta em obras de sacrifício e de doação; regresso a casa do Pai, por meio do sacramento do perdão, em que, ao confessar os nossos pecados, nos revestimos de Cristo e nos tornamos assim seus irmãos, membros da família de Deus» (Cristo que passa, n° 64).

20-24. Deus espera sempre o regresso do pecador e quer que se arrependa. Quando chega O filho pródigo as palavras do pai não são de repreensão mas de imensa compaixão, que o leva a abraçar o filho e a cobri-lo de beijos.

20. «Não há dúvida de que, naquela simples mas pene­trante comparação, a figura do pai revela-nos Deus como Pai (…). O pai do filho pródigo é f tela sua paternidade, fiel ao amor que desde sempre tinha dedicado ao seu filho. Tal fidelidade manifesta-se na parábola não apenas na prontidão em rece­bê-lo em casa, quando ele voltou depois de ter esbanjado a herança, mas sobretudo na alegria e no clima de festa tão generoso para com o esbanjador que regressa. Esta atitude provoca até a inveja do irmão mais velho, que nunca se tinha afastado do pai, nem abandonado a casa paterna.

«A fidelidade a si próprio por parte do pai — traço caracte­rístico já conhecido pelo termo do Antigo Testamento ‘hesed’ — exprime-se de modo particularmente denso de afecto. Lemos, com efeito, que, ao ver o filho pródigo regressar a casa, o pai, ‘movido de compaixão, correu ao seu encontro, abraçou-o efusivamente e beijou-o’. Procede deste modo levado certamente por profundo afecto; e assim se explica também a sua generosidade para com o filho, generosidade que causará tanta indignação no irmão mais velho» (Dives in misericórdia, n 6).

«Perante um Deus que corre para nós, não podemos calar-nos e dir-Lhe-emos com São Paulo: Abba, Pater! (Rom VIII, 15). Pai! Meu Pai! Pois, sendo Ele o Criador do universo, não dá importância a títulos altissonantes, nem sente falta da justa confissão do seu poderio. Quer que Lhe chamemos Pai, que saboreemos essa palavra, enchendo a alma de alegria (…).

«Deus espera-nos como o pai da parábola, estendendo para nós os braços, embora não o mereçamos. Não importa o que lhe devemos. Como no caso do filho pródigo, o que é preciso é que lhe abramos o coração, que tenhamos sau­dades do lar paterno, que nos maravilhemos e nos alegremos perante o dom que Deus nos fez de nos podermos chamar e sermos realmente, apesar de tanta falta de correspondência da nossa parte, seus filhos» (Cristo que passa, n° 64).

25-30. A misericórdia de Deus é tão grande que escapa à compreensão do homem; e este é o caso do filho mais velho, que considera excessivo o amor do pai para com o filho mais novo; a sua inveja não o deixa compreender as manifestações de amor que o pai mostra ao recuperar o filho perdido, nem compartilhar a alegria da família. «É verdade que foi pecador. — Mas não faças dele esse juízo inabalável. — Abre o coração à piedade, e não te esqueças de que ainda pode vir a ser um Agostinho, enquanto tu não passas de um medíocre» (Caminho, n° 675).

Por outro lado, devemos considerar que se Deus tem compaixão dos pecadores, quanto mais terá dos que se esforçam por permanecer fiéis. Bem o compreendia Santa Teresinha de Lisieux: «Que doce alegria a de pensar que o Senhor é justo, isto é, que conta com as nossas debilidades, que conhece perfeitamente a fragilidade da nossa natureza! Por quê, pois, temer? O bom Deus, infinitamente justo, que Se dignou perdoar com tanta misericórdia as culpas do filho pródigo, não será também justo comigo que estou sempre junto d’Ele?» (História de uma alma, cap. 8).

32. «A misericórdia apresentada por Cristo na parábola do filho pródigo tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado ‘agape’. Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda a miséria moral, sobre o pecado. Quando isto acontece, aquele que é objecto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e ‘revalorizado’. O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido ‘reencontrado’ e por ter ‘voltado à vida’. Esta alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser real­mente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio» (Dives in misericórdia, n 6).

28.02.2016 – Lc 13, 1-19

Nessa ocasião, apareceram alguns a Necessidade dar-Lhe a notícia dos Galileus, cujo da conversão sangue Pilatos havia misturado com o dos sacrifícios deles. 2Disse-lhes Ele, em resposta: Julgais que esses Galileus, por terem sofrido tal pena, eram mais pecadores que todos os outros Galileus? 3Não, digo- vos Eu; mas, se vos não arrependerdes, perecereis todos igualmente. 4E aqueles dezoito sobre os quais caiu a torre em Siloá e os matou! Julgais que eles eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? 5Não, digo- vos Eu; mas, se vos não arrependerdes, perecereis todos de maneira semelhante.

6Expôs-lhes então a seguinte parábola: Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha e foi buscar a fruta que nela houvesse, mas não a encontrou. 7Disse então ao vinhateiro: «Há já três anos que venho buscar a fruta que haja nesta figueira e não a encontro. Corta-a. Para que está ela a tornar a terra inútil?» 8Mas este diz-lhe, em res­posta: «Senhor, deixa-a mais este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e dei­tar-lhe estrume; 9talvez venha a dar fruto no futuro! Senão, mandá-la-ás cortar».

Comentário

1-5. O Senhor servia-Se dos acontecimentos com actualidade para dar doutrina às multidões. O caso dos galileus poderia ser o mesmo episódio a que alude o livro dos Actos (Act 5,37), e reflecte o ambiente do tempo de Jesus, em que Pilatos reprimia com dureza cruel qualquer tentativa de revolta política. A propósito do acidente de Siloé não temos mais notícias que as que nos dá aqui o Evangelho.

O facto de aquelas pessoas padecerem tais desgraças não se devia a que fossem piores que os outros, porque Deus nem sempre castiga nesta vida os pecadores (cfr Ioh 9,3). Todos somos pecadores e merecemos um castigo pior que o das desgraças terrenas: o castigo eterno; mas Cristo, veio reparar pelos nossos pecados e abriu-nos as portas do Céu. Nós temos de nos arrepender dos nossos pecados porque só assim Deus nos livrará do castigo merecido. «Quando vier o sofrimento, o desprezo…, a Cruz, considera: que é isto, para o que eu mereço?» (Caminho, n° 690).

3. «Ele diz-nos que, sem o santo Baptismo, ninguém entrará no Reino dos Céus (cfr Ioh 3,5); e noutro lugar, que se não fizermos penitência todos pereceremos (Lc 13,3). Tudo se compreende facilmente. Desde que o homem pecou, todos os seus sentidos se rebelaram contra a razão; por conseguinte, se quisermos que a carne esteja submetida ao espírito e à razão, é necessário mortificá-la; se quisermos que o corpo não faça a guerra à alma, é preciso castigá-lo a ele e a todos os sentidos; se quisermos ir a Deus, é neces­sário mortificar a alma com todas as suas potências» (Sermões escolhidos, Quarta Feira de Cinzas).

6-9. O Senhor insiste na necessidade de produzir frutos abundantes (cfr Lc 8,11-15) correspondendo às graças rece­bidas (cfr Lc 12,48). Junto a este imperativo profundo, Jesus Cristo põe em relevo a paciência de Deus na espera desses frutos. Ele não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva (Ez 33,11) e, como ensina São Pedro, «usa de paciência convosco, não querendo que alguns pereçam mas que todos cheguem à conversão» (2 Pet 3,9). Esta clemência divina, porém, não nos pode levar a descuidar os nossos deveres, adoptando uma posição de preguiça e de comodidade que tornaria estéril a própria vida. Deus ainda que seja misericordioso também é justo, e castigará as faltas de correspondência à Sua graça.

«Há um caso que nos deve doer sobremaneira: o daque­les cristãos que podiam dar mais e não se decidem; que podiam entregar-se totalmente vivendo todas as consequências da sua vocação de filhos de Deus, mas resistem a ser generosos. Deve-nos doer, porque a graça da Fé não se nos dá para ficar oculta, mas para brilhar diante dos homens (cfr Mt V, 15-16); porque, além disso, está em jogo a felicidade temporal e eterna dos que procedem assim. A vida cristã é uma maravilha divina, com promessa de imediata satisfação e serenidade, mas com a condição de sabermos apreciar o dom de Deus. (Cfr. Ioh 4, 10), sendo generosos sem medida» (Cristo que passa, n° 147).

29.02.2016 – Lc 4, 24-30

Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua terra; 25mas, na realidade, vos digo Eu, muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou por três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a Terra, 26e a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta de Sidónia. 27E muitos leprosos havia em Israel, no tempo do Profeta Eliseu, mas nenhum deles foi limpo senão o sírio Naamã.

28Todos na sinagoga se encheram de furor, ao ouvirem estas coisas. 29Ergueram-se então, lançaram-No fora da cidade e levaram-No até a uma escarpa do outeiro em que estava construída a cidade, a fim de O precipitarem. 30Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o Seu caminho

Comentário

22-29. Os habitantes de Nazaré escutam ao princípio com agrado as palavras cheias de sabedoria de Jesus. Mas a visão destes homens é muito superficial. Com um orgulho mesquinho sentem-se feridos pelo facto de Jesus, seu con­cidadão, não ter feito em Nazaré os prodígios que fez noutras cidades. Levados por uma confiança mal entendida, exigem-Lhe com insolência que faça ali milagres para agradar à sua vaidade, mas não para se converterem. Diante desta atitude Jesus não faz nenhum prodígio, seguindo o Seu modo habitual de proceder (veja-se, por exemplo, o encontro com Herodes em Lc 23,7-11); inclusivamente censura a sua posi­ção, explicando-lhes com dois exemplos tomados do AT (cfr 1Reg 17,9 e 2Reg 5,14) a necessidade de uma boa disposição a fim de que os milagres possam dar origem à fé. A atitude de Cristo fere-os no seu orgulho até ao ponto de O quererem matar. Todo o episódio é uma boa lição para entender de veras a Jesus: só pode ser entendido na humildade e na séria resolução de nos pormos nas Suas mãos.

30. Jesus não foge precipitadamente, mas vai-Se reti­rando por entre a turba agitada com uma majestade que os deixou paralisados. Como noutras ocasiões, os homens não podem nada contra Jesus: o decreto divino era que o Senhor morresse crucificado (cfr Ioh 18,32) quando chegasse a Sua hora.

Postagens Recentes
Fale conosco

Escreva aqui sua mensagem que responderemos o mais breve possível. Obrigado!

Comece a digitar e pressione Enter para pesquisar