45E Ele obrigou logo os Seus discípulos a embarcar e ir adiante para o outro lado, para Betsaida, enquanto Ele despedia o povo. 46Depois de os mandar embora, retirou-Se para o monte, a orar.
47Ao cair da noite, estava o barco a meio do mar, e Ele sozinho em terra. 48Vendo-os afadigados a remar, pois o vento era-lhes contrário, cerca da quarta vigília da noite, vem ter com eles, caminhando sobre o mar, e queria passar-lhes adiante. 49Eles, ao verem-No caminhar sobre o mar, julgaram que era um fantasma e gritaram; 50porque todos O tinham visto e ficaram assustados. Mas logo Ele lhes falou, dizendo: Tende confiança, sou Eu, não temais. 51E subiu para junto deles, no barco e cessou o vento. Com isto ficavam ainda muitíssimo mais assombrados, 52pois nem com os pães tinham compreendido, por terem a inteligência obtusa.
Comentário
- 48. A noite, segundo o uso romano, dividia-se em quatro partes ou vigílias, cuja duração variava em cada época do ano. São Marcos dá o nome popular das quatro em 13, 35; entardecer, meia noite, canto do galo e aurora. O Senhor, portanto, dirigiu-se aos discípulos pelo amanhecer.
Com este inolvidável acontecimento quis ensinar-lhes que no meio das situações mais apertadas e inexplicáveis da vida, Ele está próximo de nós para nos ajudar a seguir para a frente, não sem antes nos ter deixado lutar para que se fortaleça a nossa esperança e se forje o nosso caracter (cfr a nota a Mt 14, 24-33), como diz um antigo comentador grego: « O Senhor permitiu que os Seus discípulos corressem perigo para que se tornassem pacientes, e não lhes acudiu imediatamente, mas deixou-os no perigo toda a noite, a fim de os ensinar a esperar com paciência e para que não se acostumassem a receber imediatamente o socorro nas tribulações» (Enarratio in Evangelium Marci, ad loc.).
- Os discípulos não acabam de entender os milagres de Jesus como sinais da Sua divindade. Assim acontece diante dos milagres da multiplicação dos pães e dos peixes (Mc 6, 33-44) e da segunda multiplicação dos pães (Mc 8, 17). Diante destas maravilhas sobrenaturais, os Apóstolos têm ainda o seu coração e a sua inteligência endurecidos; não chegam a descobrir em toda a sua profundidade o que Jesus lhes está a ensinar com os Seus feitos: que Ele é o Filho de Deus. Jesus Cristo é compreensivo e paciente com estes defeitos dos Seus discípulos: também não entenderão quando Jesus lhes falar da Sua própria Paixão (Lc 18, 34). O Senhor multiplicará os Seus ensinamentos e milagres para iluminar as inteligências dos discípulos, e mais tarde enviará o Espírito Santo, que lhes ensinará todas as coisas e lhes recordará os Seus ensinamentos (cfr Ioh 14,26).
São Beda o Venerável faz o seguinte comentário a todo o episódio (Mc 6, 45-52): «Em sentido místico, o trabalho dos discípulos a remar e o vento contrário assinalam os trabalhos da Igreja santa que, entre as vagas do mundo inimigo e a exalação dos espíritos imundos, se esforça por chegar ao descanso da pátria celeste. Com razão, pois, se diz que a barca estava no meio do mar e Ele só em terra, porque a Igreja nunca foi tão intensamente perseguida pelos gentios que parecesse que o Redentor a tivesse abandonado de todo. Mas o Senhor vê os Seus a lutar no mar e, para que não desfaleçam nas tribulações, fortalece-os com o seu olhar de misericórdia e algumas vezes livra-os do perigo com a Sua clara ajuda» (In Marci Evangelium expositio, ad loc.).
10.01.2019 – Lc 4, 14-22a.
14Voltou Jesus com a força do Espírito para a Galileia, e a Sua fama propagou-se por toda a região. 15Ensinava pessoalmente nas sinagogas daquela gente, sendo elogiado por todos.
16Veio a Nazaré, onde Se tinha criado. Segundo o Seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-Se para ler. 17Foi-Lhe entregue o Livro do Profeta Isaías e, ao abri-lo, deparou com a passagem em que estava escrito:
18O Espírito do Senhor está sobre Mim, por isso que Me ungiu.
A anunciar a Boa. Nova aos pobres Me enviou, a proclamar a libertação aos cativos e o recobrar da vista aos cegos, a mandar em liberdade os oprimidos, 19a proclamar um ano de graça do Senhor.
20E, depois de enrolar o livro, entregou-o ao empregado e sentou-Se. Estavam cravados n’Ele os olhos de quantos se encontravam na sinagoga. 21Começou então a dizer-lhes: Cumpriu-se hoje este passo da Escritura que acabais de ouvir. 22Todos davam testemunho em favor d’Ele e admiravam-se com as graciosas palavras que saíam da Sua boca.
Comentário
16-30. O sábado era o dia de descanso e de oração para os Judeus, por mandamento de Deus (Ex 20,8-11). Neste dia reuniam-se para se instruírem na Sagrada Escritura. Começava a reunião recitando todos juntos a Shemá, resumo dos preceitos do Senhor, e as dezoito bênçãos. Depois lia-se um passo do livro da Lei — o Pentateuco —- e outro dos Profetas, O presidente convidava algum dos presentes que conhecesse bem as Escrituras a dirigir a palavra ao auditório. Por vezes levantava-se algum voluntariamente e solicitava a honra dei cumprir este encargo. Assim deve ter acontecido nesta ocasião. Jesus busca a oportunidade de instruir o povo (cfr Lc 4,16 ss.), e o mesmo farão depois os Apóstolos (cfr Act 13,5.14.42.44; 14,1, etc.). A reunião judaica terminava com a bênção sacerdotal, que recitava o presidente ou um sacerdote se o havia, à qual todos respondiam: «Amen» (cfr Num 6,22 ss.).
18-21. Jesus leu o passo de Isaías 61,1-2, onde o profeta anuncia a chegada do Senhor que libertará o povo das suas aflições. N’Ele se cumpre essa profecia, já que é o Ungido, o Messias que Deus enviou ao Seu povo atribulado. Jesus recebe a unção do Espírito Santo para a missão que o Pai Lhe confia. «Segundo São Lucas (vv. 18-19), estas afirmações são a Sua primeira declaração messiânica, à qual se seguem os factos e as palavras conhecidos por intermédio do Evangelho. Mediante tais factos e palavras, Cristo torna o Pai presente no meio dos homens» (Dives in misericórdia n. 3).
As promessas anunciadas nos vv. 18 e 19 constituem o conjunto de bens que Deus enviaria ao Seu povo por meio do Messias. Por «pobres» deve entender-se, segundo a tradição do AT e a pregação de Jesus (cfr a nota a Mt 5,3), não tanta! uma determinada condição social mas antes a atitude religiosa de indigência e de humildade diante de Deus dos que, em vez de confiar nos seus próprios bens e méritos, confiam na bondade e misericórdia divinas. Por isso evangelizar os pobres é anunciar-lhes a «boa notícia» de que Deus Se compadeceu deles. Do mesmo modo, a Redenção, a que alude o texto, tem sobretudo um sentido espiritual e transcendente: Cristo vem livrar-nos da cegueira e da opressão do pecado, que são, em última análise, a escravidão a que nos submeteu o demônio. «O cativeiro é sensível — ensina São João Crisóstomo num comentário ao Salmo 126 — quando procede de inimigos corporais; mas pior é o cativeiro espiritual a que se refere aqui, já que o pecado produz a mais dura tirania, manda o mal e confunde os que lhe obedecem: deste cárcere espiritual nos tirou Jesus Cristo» (Catena Áurea). Não obstante, este passo cumpre-se, além disso, na preocupação que Jesus manifesta pelos mais necessitados. «De igual modo, a Igreja abraça com amor todos os afligidos pela enfermidade humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu Fundador, pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e intenta servir neles a Cristo» (Lumen gentium, n. 8).
18-19. As palavras de Isaías, que Cristo leu nesta ocasião, descrevem de modo gráfico a finalidade para que Deus enviou o Seu Filho: a redenção do pecado, a libertação da escravidão do demônio e da morte eterna. É certo que Cristo durante o Seu ministério público, movido pela Sua misericórdia, fez algumas curas, livrou alguns endemoninhados, etc. Mas não curou todos os doentes do mundo, nem suprimiu todas as penalidades desta vida, porque a dor, introduzida no mundo pelo pecado, tem um irrenunciável valor redentor unida aos sofrimentos de Jesus. Por isso, o Senhor realizou alguns milagres, que constituem não tanto o remédio das dores em tais casos concretos, mas a mostra da Sua missão divina de redenção universal e eterna.
A Igreja continua esta missão de Cristo: «Ide, pois, e fazei discípulos todas as gentes, baptizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; e ensinando-as a observar tudo o que vos mandei. E sabei que Eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo» (Mt 28,19-20). São as palavras simples e sublimes do fim do Evangelho de São Mateus: aí está assinalada «a obrigação de pregar as verdades de fé, a urgência da vida sacramentai, a promessa da assistência contínua de Cristo à Sua Igreja. Não se é fiel ao Senhor se se desatendem essas realidades sobrenaturais: a instrução na fé e na moral cristãs, a prática dos sacramentos. Com este mandato Cristo funda a Sua Igreja (…). E a Igreja só pode dar a salvação às almas se permanece fiel a Cristo na sua constituição, nos seus dogmas, na sua moral.
«Rejeitemos, portanto, o pensamento de que a Igreja — esquecendo o Sermão da Montanha — busca a felicidade humana na terra, porque sabemos que a sua única tarefa consiste em levar as almas à glória eterna do paraíso; rejeitemos qualquer solução naturalista, que não aprecie o papel primordial da graça divina; rejeitemos as opiniões materialistas, que procuram fazer perder a sua importância aos valores espirituais na vida do homem; rejeitemos de igual modo as teorias secularizantes, que pretendem identificar os fins da Igreja de Deus com os dos Estados terrenos: confundindo a essência, as instituições, a actividade, com características semelhantes às da sociedade temporal» (J. Escrivá de Balaguer, Hom. O fim sobrenatural da Igreja).
- Os Santos Padres veem designadas neste versículo as três Pessoas da Santíssima Trindade: o Espírito (Espírito Santo) do Senhor (o Pai) está sobre Mim (o Filho) (cfr Orígenes, Homília 32). O Espírito Santo habitava na alma de Cristo desde o instante da Encarnação, e desceu visível mente em forma de pomba quando foi baptizado por João (cfr Lc 3,21-22).
«Por isso que Me ungiu»: Refere-se à unção que Jesus Cristo recebeu no momento da Encarnação, principalmente pela graça da união hipostática. «Esta unção de Jesus Cristo não foi corporal, como a dos antigos reis, sacerdotes e profetas, mas toda espiritual e divina, porque a plenitude da divindade habita n’Ele substancialmente» (Catecismo Maior, n° 77). Desta união hipostática deriva a plenitude de todas as graças. Para a significar diz-se que Jesus Cristo foi ungido pelo próprio Espírito Santo, e não só recebeu as graças e os dons do Espírito Santo, como os santos.
- «Ano de graça»: Alude ao ano jubilar dos judeus, estabelecido pela Lei de Deus (Lev 25,8 ss.) cada cinquenta anos, para simbolizar a época de redenção e liberdade que trará o Messias. A época inaugurada por Cristo, o tempo da Nova Lei até ao fim deste mundo, é o «ano de graça», o tempo da misericórdia e da redenção, que se alcançarão completamente na vida eterna.
De maneira semelhante, a instituição do Ano Santo na Igreja Católica tem este sentido de anúncio e recordação da Redenção trazida por Cristo e da sua plenitude na vida futura.
20-22. As palavras do versículo 21 mostram-nos a autoridade com que Cristo falava e explicava as Escrituras: «Cumpriu-se hoje este passo da Escritura que acabais de ouvir». Jesus ensina que esta profecia, como as principais do AT, se referem a Ele e n’Ele têm o seu cumprimento (cfr Lc 24,44 ss.). Por isso, o AT não pode ser rectamente entendido senão à luz do NT: nisto consiste a inteligência para entender as Escrituras que Cristo Ressuscitado deu aos Apóstolos (cfr Lc 24,45) e que o Espírito Santo completou no dia de Pentecostes (cfr Act 2,4).