em Evangelho do dia

No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus! 2Ele estava, no princípio, com Deus. 3Tudo, por meio d’Ele, começou a existir e, sem Ele, coisa alguma começou a existir. 4N’Ele, o que existe era Vida e a Vida era a Luz dos homens. 5A Luz brilha nas trevas e as trevas não A dominaram.

6Surgiu um homem enviado de Deus, cujo nome era João.

7Veio como testemunha, para dar testemunho da Luz, a fim de todos crerem por seu intermédio.

8Ele não era a Luz, mas devia dar testemunho da Luz.

9O Verbo era a Luz verdadeira, que a todo o homem ilumina, vindo ao mundo.

10Estava no mundo, e o mundo, por meio d’Ele, começou a existir, mas o mundo não O conheceu.

11Veio para o que era Seu, e os Seus não O acolheram.

12Mas a quantos O receberam deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus, a eles que creem no Seu nome, 13que nasceram, não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus.

14E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. E nós vimos a Sua glória, glória como de um Filho único que vem do Pai, cheio de graça e de verdade.

15João dá testemunho d’Ele e clama, nestes termos:

«Era d’Este que eu dizia: O que vem depois de mim

Passou à minha frente, porque era antes de mim».

16E da Sua plenitude todos nós recebemos, graça por graça.

17É que a Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.

18A Deus ninguém jamais O viu. Um Deus, Filho único, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer.

 

Comentário

1-18. Estes versículos constituem o prólogo ou intro­dução ao quarto Evangelho; são um belo canto que, antes do relato da vida terrena de Jesus Cristo, engrandece e proclama a Sua divindade e eternidade. Jesus é o Verbo Incriado, o Deus Unigénito que assume a nossa condição humana e nos oferece a possibilidade de ser filhos de Deus, isto é, de participar real e sobrenaturalmente da própria vida divina.

O apóstolo João sublinha particularmente em todo o seu Evangelho a divindade do Senhor: não começou a existir ao fazer-Se homem, mas antes de tomar carne nas entranhas virginais de Maria, antes de todas as criaturas, existia na eternidade divina como Verbo consubstancial ao Pai e ao Espírito Santo. Esta é a verdade luminosa, graças à qual se podem apreciar as palavras e os factos de Jesus recolhidos ao longo do quarto Evangelho.

São João chega a contemplar a divindade de Jesus Cristo e a exprimi-la como o Verbo de Deus, depois de ter sido testemunha do Seu ministério público e das Suas aparições depois da Ressurreição. Ao pôr este poema como prólogo do Evangelho, o Apóstolo oferece-nos a chave para compreen­der com profundidade tudo quanto vai escrever a seguir; tem uma função semelhante aos dois primeiros capítulos dos Evangelhos de São Mateus e São Lucas, que nos introduzem na contemplação da vida de Jesus, narrando o nascimento virginal e alguns episódios relevantes da Sua infância, embora se pareça mais, pela sua estrutura e conteúdo, com os passos introdutórios de outros livros do NT como Col 1, 15-20, Eph 1, 3-14 e 1Ioh 1, 1-4.

É evidente que o prólogo constitui um grandioso hino a Cristo. Não sabemos se São João o compôs quando escreveu o Evangelho, ou se se serviu de algum hino litúrgico existente, que adaptaria para que servisse de introdução ao seu livro. O certo é que na documentação cristã só aparece como prólogo do quarto Evangelho.

O prólogo de São João recorda-nos o primeiro capítulo do Gênesis por vários motivos: 1) a coincidência nas primeiras palavras, No princípio…, que no Evangelho se referem ao princípio absoluto, isto é, à eternidade, enquanto no Gênesis se referem ao princípio concreto da Criação e do tempo. 2) O paralelismo na função que desempenha o Verbo: no Gênesis Deus vai criando todos os seres mediante a Sua palavra; no Evangelho diz-se que tudo foi feito pelo Verbo (Palavra) de Deus. 3) No Gênesis a obra criadora de Deus culmina com a criação do homem à imagem e semelhança de Deus; no Evangelho, a obra do Verbo Encarnado culmina na elevação do homem — como uma nova criação — à dignidade de filho de Deus.

Como ensinamentos principais que aparecem no prólogo podem apreciar-se: 1) a divindade e eternidade do Verbo; 2) a Encarnação do Verbo e a Sua manifestação como homem; 3) a intervenção do Verbo na Criação e na obra salvífica da humanidade; 4) o comportamento diverso dos homens diante da vinda do Salvador: uns aceitam-No com fé e outros rejeitam-No; 5) por último, João Baptista é a teste­munha da presença do Verbo no mundo.

A Igreja deu sempre especial importância a este prólogo. Foram muitos os Santos Padres e escritores da antiguidade cristã que o comentaram amplamente, e durante séculos leu-se no fim da Santa Missa, como instrução e meditação permanentes,

Este prólogo tem forma de poema. A doutrina vai-se expondo em versos, agrupados em estrofes (vv. 1-5; 6-8; 9-13; 14-18). Como uma pedra lançada a um tanque produz umas ondas que se vão ampliando, assim a ideia expressada ao princípio de cada estrofe costuma ir-se ampliando nos ,versos sucessivos sem perder o ponto de partida. É um modo de explicar as coisas muito típico dos antigos povos, que favorece a compreensão progressiva dos conceitos, e que Deus quis utilizar para nos facilitar a penetração nestes mistérios centrais da nossa fé.

  1. O texto sagrado chama Verbo ao Filho de Deus. Uma analogia ou comparação com as coisas humanas pode ajudar-nos a compreender a noção de «Verbo» ou «Palavra»: ,assim como um homem ao conhecer-se forma na sua mente uma imagem de si mesmo, assim Deus Pai ao conhecer-Se gera o Verbo Eterno. Este Verbo de Deus é um e único, não pode existir outro porque n’Ele se exprime toda a essência de Deus. Por isso o Evangelho não Lhe chama simplesmente «Verbo», mas «o Verbo». Do Verbo afirmam-se três verda­des: que é eterno, que é diferente do Pai, e que é Deus. «Afirmar que existia no princípio equivale a dizer que existia antes de todas as coisas» (De Trinitate, 6,2). Por outro lado, ao assinalar que estava junto de Deus, isto é, junto do Pai, ensina-nos que a pessoa do Verbo é diferente da do Pai, e indica, ao mesmo tempo, a Sua relação de intimidade com Ele, tão grande que tem a mesma natureza divina: é consubstancial ao Pai (cfr Símbolo Niceno).

O Papa Paulo VI, por ocasião do Ano da Fé (1967-1968), resumiu a verdade acerca da Santíssima Trindade no cha­mado Credo do Povo de Deus (n° 11) com estas palavras: «Cremos em Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus. Ele é o Verbo Eterno, nascido do Pai antes de todos os séculos e consubstancial ao Pai, isto é, homoousios to Patrí; por Quem foram feitas todas as coisas. E encarnou por obra do Espírito Santo, de Maria Virgem, e Se fez homem: portanto, igual ao Pai segundo a divindade, menor que o Pai segundo a huma­nidade, completamente um não por confusão da substância (que não pode fazer-se), mas pela unidade da pessoa».

«No princípio»: «Não significa senão que foi sempre e é eterno (…). Porque se é Deus, como de verdade o é, não há nada antes d’Ele; se é Criador de todas as coisas, então Ele mesmo é o primeiro; se é Dominador e Senhor de tudo, tudo é posterior a Ele: as criaturas e os séculos» (Hom. sobre S. João, 2,4).

  1. O prólogo, depois de mostrar que o Verbo está no seio do Pai, passa a tratar da Sua relação com as criaturas. Já no Antigo Testamento a Palavra de Deus aparece como força criadora (cfr Is 55,10-11), como Sabedoria que estava pre­sente na criação do mundo (cfr Prv 8,22-26). Aqui dá-se um progresso na Revelação divina: é-nos manifestado que a Criação foi realizada pelo Verbo; isto não quer dizer que o Verbo seja um instrumento subordinado e inferior ao Pai, mas que é princípio activo juntamente com o Pai e o Espírito Santo. A acção criadora é comum às três Pessoas divinas da Santíssima Trindade: «O Pai que gera, o Filho que nasce, e o Espírito Santo que procede são consubstanciais, co-iguais e co-eternos: são um só princípio de todas as coisas; Criador de todas as coisas, das visíveis e das invisíveis, das espirituais e das corporais» (IV Concilio de Latrão, De fide catholica, Dz-Sch, n. 800). Disso se deduzem, entre outras coisas, os vestígios da Trindade na criação e, portanto, a bondade radical das coisas criadas.
  2. A seguir expõem-se as verdades fundamentais sobre o Verbo: que é a Vida e que é a Luz. Aqui trata-se da vida divina, fonte primeira de toda a vida, da natural e da sobre­natural. E essa Vida é luz dos homens, porque recebemos de Deus a luz da razão, a luz da fé e a luz da glória, que são participação da Inteligência divina. Só a criatura racional é capaz de conhecer Deus neste mundo, e de O contemplar depois gozosamente no Céu por toda a eternidade. Também a Vida (o Verbo) é luz dos homens enquanto os ilumina tiran­do-os das trevas, isto é, do mal e do erro (cfr Is 8, 23; 9, 1.2; Mt 4, 15-16; Lc 1, 74). Jesus dirá mais adiante: «Eu sou a luz do mundo; aquele que Me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida» (Ioh 8, 12; cfr 12, 46).

Os versículos 3 e 4 podem ler-se com outra pontuação, hoje geralmente abandonada, ainda que na antiguidade tenha tido bastantes defensores. Segundo essa pontuação poderia traduzir-se assim:

 «3Tudo foi feito por Ele e sem Ele não se fez nada;

4tudo o que foi feito n’Ele, era vida, e a vida era luz dos homens».

Esta leitura indicaria que tudo o que foi criado é vida no Verbo, isto é, que todos os seres recebem o ser e o operar, o viver, pelo Verbo, não sendo possível sem Ele a existência.

  1. «Dominaram»: O verbo original grego, que o texto latino traduz por comprehenderunt, significa abraçar ou abarcar uma coisa como que rodeando-a com os braços; mas este acto pode fazer-se com intenção de bom acolhimento (abraço amigável), ou de hostilidade (acção de sufocar ou asfixiar outro apertando-o). Há, pois, lugar para duas pos­síveis traduções do versículo: a de ‘receberam’, ou a que expressaria que as trevas não puderam apagar ou sufocar a luz, que a tradução portuguesa por nós adoptada exprime com a palavra ‘dominaram’. Com esta última interpretação indicar-se-ia que Cristo e o Seu Evangelho continuam a brilhar entre os homens apesar da oposição do mundo, ven­cendo-o, segundo as palavras de Jesus: «Confiai: Eu venci o mundo» (Ioh 16, 33; cfr 12, 31; 1Ioh 5, 4). Em qualquer caso, o versículo exprime a resistência, a luta das trevas contra a luz. Que coisa sejam a luz e as trevas São João i-lo-á indicando ao longo do Evangelho; para já, nos versículos 9 a 11 refere-se à luta entre ambas; e posteriormente por trevas designará o mal e as potências do maligno, que obscurecem a mente do homem e obstaculizam o conheci­mento de Deus (cfr Ioh 12, 15-46; 1Ioh 5, 6).

Santo Agostinho (In Ioann. Evang. 1,19) comenta assim este passo: «Pode ser que haja uns corações insensatos, ainda incapazes de receber essa Luz, porque o peso dos seus pecados os impede de vê-la; que não pensem, porém, que a Luz não existe por não a poderem ver: é que eles mesmos, pelos seus pecados, tornaram-se trevas. Meus irmãos, é como se um cego estivesse diante do sol. O sol está presente, mas o cego está ausente do sol. Assim todo o homem néscio, todo o homem iníquo, todo o homem sem religião, tem um coração cego. Que pode fazer? Que se limpe, e verá Deus; verá a Sabedoria presente, porque Deus é a própria Sabe­doria, e está escrito: ‘Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus’». Não há dúvida que o pecado entenebrece o olhar espiritual do homem, incapacitando-o para ver e apreciar as coisas de Deus.

6-8. Depois de considerar a divindade do Verbo, passa-se a tratar da Encarnação, e começa-se por falar de João Baptista, que aparece num momento histórico concreto como a testemunha directa de Jesus Cristo diante dos homens (Ioh 1,15.19-36; 3,22 ss.). Assim dirá Santo Agosti­nho: «Porque (o Verbo Encarnado) era homem e ocultava a Sua divindade, precedeu-O um grande homem com a missão de dar testemunho a favor daquele que era mais que homem» (In Ioann. Evang., 2,5).

Todo o Antigo Testamento é uma preparação para a vinda de Cristo. Assim os Patriarcas e os Profetas anunciaram de diversas maneiras a salvação que viria pelo Messias. Mas João Baptista, o maior dos nascidos de mulher (cfr Mt 11, 11), pôde indicar com o dedo q próprio Messias (cfr Ioh 1, 29), sendo o testemunho do Baptista a culminação de todas as profecias anteriores.

A missão de João Baptista como testemunha de Jesus Cristo é tão importante que os Evangelhos Sinópticos começam a narração do ministério público de Jesus por esse testemunho. Os discursos de São Pedro e de São Paulo, recolhidos nos Actos dos Apóstolos, também aludem ao testemunho de João (Act 1, 22; 10, 37; 12, 24). O quarto Evan­gelho menciona-o sete vezes (1, 6.15.19.29.35; 3, 27; 5, 33). Sabemos, além disso, “que o apóstolo São João tinha sido discípulo do Baptista antes de o ser do Senhor, e que precisamente o Baptista foi quem o encaminhou para Cristo” (cfr 1,37ss.).

O Novo Testamento, pois, ensina-nos a transcendência da missão do Baptista, ao mesmo tempo que a clara consciência de este não ser senão o Precursor imediato do Messias, ao qual não é digno de desatar as correias das Suas sandálias (cfr Mc 1, 7); por isso o Baptista insiste no seu papel de testemunha de Cristo e na sua missão de preparar o caminho ao Messias (cfr Lc 1, 15-17; Mt 3, 3-12). O testemunho de João Baptista permanece através dos tempos, convi­dando todos os homens a abraçar a fé em Jesus, a Luz verdadeira.

  1. «Era a luz verdadeira»: Os Santos Padres, as versões antigas e a maioria dos comentadores actuais entendem que o sujeito de «era» é «o Verbo». Neste caso, a frase poderia traduzir-se: «o Verbo era a luz verdadeira». Outra interpre­tação, pela qual se inclinam bastantes autores modernos, põe como sujeito de «era» a Luz. Deste modo, a tradução seria: «Existia a Luz verdadeira». Em última análise, o con­teúdo é quase o mesmo.

«Vindo ao mundo»: Segundo o texto grego não está claro a que se referem estas palavras. Podem aplicar-se quer à «luz», quer a «todo o homem». No primeiro caso, é a Luz (o Verbo) que vindo a este mundo ilumina todos os homens. No segundo caso, são os homens que ao virem a este mundo, ao nascerem, são iluminados pelo Verbo. O texto latino da Neo-vulgata optou pela primeira interpretação.

Chama-se ao Verbo «a luz verdadeira» porque é a luz originária da qual procede toda a outra luz ou revelação de Deus. Ao vir o Verbo ao mundo, este fica plenamente iluminado pela autêntica Luz. Os profetas e todos os outros enviados de Deus, incluído João Baptista, não eram a verda­deira luz, mas o reflexo, as testemunhas da Luz do Verbo. Perante a plenitude desta luz que é o Verbo, interroga-se São João Crisóstomo: «Como é que tantos homens permanecem envoltos em trevas? Porque nem todos os homens creem em Jesus Cristo nem Lhe rendem o culto augusto que Lhe é devido. Como, pois, pode dizer-se que ilumina todo o homem? Sim. Ele ilumina todos segundo a disposição e a vontade de cada um. Na medida em que depende do Verbo, ilumina todos. Mas se livremente os homens fecham os olhos da sua alma a esta luz, se rejeitam os seus raios, então o facto de permanecerem em trevas não se deve à natureza da luz, mas à maldade de coração de quem se priva deste dom da graça» (Hom. sobre S. João, 8,1).

  1. O Verbo está no mundo como o artífice que governa o que fez (cfr In loann. Evang., 2,10). O termo «mundo» no Evangelho de São João indica, além de tudo o que foi criado, o conjunto dos homens; assim Cristo veio para salvar a humanidade inteira; «Deus amou de tal maneira o mundo que lhe entregou o Seu Filho Unigénito, para que todo o que crê n’Ele não pereça mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou Seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (Ioh 3, 16-17). Mas enquanto uma grande parte dos homens rejeitaram a Luz, isto é. Cristo, « mundo» significa também tudo aquilo que se opõe a Deus (cfr Ioh 17, 14-15). Os homens que, obcecados pelas suas culpas, não reconhecem no mundo a obra do Criador (cfr Rom 1, 18-20; Sap 13, 1-15), ficam apegados só ao mundo e gostam exclusivamente das coisas que são do mundo» (Hom. sobre S. João, 7). Mas o Verbo, «luz verdadeira», veio para nos revelar a verdade acerca do mundo (cfr Ioh 1, 3; 18, 37) e para nos salvar.
  2. Pelos « Seus » entende-se, em primeiro lugar, o povo judaico, que tinha sido escolhido por Deus como povo da Sua propriedade (Dt 7, 6-7) para que nele nascesse Cristo. Também pode entender-se toda a humanidade, pois perten­ce-Lhe por ter sido criada por Ele e Ele ter estendido a ela a Sua obra redentora. Daí que a censura por não receber o Verbo feito homem há-de entender-se não só dirigida aos judeus mas também a todos os que, chamados por Deus à Sua amizade, O rejeitam. «Cristo veio; mas por uma misteriosa e terrível infelicidade nem todos O conheceram, nem todos O aceitaram (…). É o quadro da humanidade tal como, depois de vinte séculos de cristianismo, se abre diante de nós. Como é possível? Que quer dizer? Não pretenderemos verificar uma realidade imersa em mistérios que nos transcendem: o mistério do bem e do mal. Mas podemos recordar que a economia de Cristo, para que a sua luz se difunda, deve desdobrar-se numa subalterna, mas necessária, cooperação humana: a da evangelização, a da Igreja apostólica e missio­nária, que se registra resultados incompletos, é mais uma razão para ser ajudada e integrada por todos» (Audiência geral Paulo VI, 4-XII-1974).
  3. Receber o Verbo é aceitá-Lo pela fé, porque pela fé Cristo habita em nossos corações (cfr Eph 3, 17). Crer no Seu Nome significa crer na Sua Pessoa, em Jesus como o Cristo, o Filho de Deus. Isto é, «os que creem no Seu nome são aqueles que guardam íntegro o nome de Cresto, de tal maneira que não diminuem nada da Sua divindade ou da Sua humani­dade» (Comentário sobre S. João, ad loc.).

«Deu-lhes poder» equivale a «concedeu-lhes» através de um dom: a graça santificante; «porque não está no nosso poder tornar-nos filhos de Deus» (ibid.). Este dom estende-se pelo Baptismo a todos os homens sem limite de raça, idade, cultura, etc. (cfr. Act 10, 45; Gal 3, 28). A única condição exigida é a fé.

«O Filho de Deus fez-Se homem — explica Santo Atanásio — para que os filhos do homem, os filhos de Adão, se tornassem filhos de Deus (…). Ele é Filho de Deus por natureza; nós, por graça» (De Incarnatione contra arríanos, 8). Trata-se do nascimento para a vida sobrenatural, na qual «todos gozamos da mesma dignidade: escravos e livres, gregos, bárbaros e asiáticos, sábios e incultos, homens e mulheres, crianças e velhos, ricos e pobres… Tão grande é a força da fé em Cristo, tão poderosa a graça!» (Hom. sobre S. João, 10,2).

«A união de Cristo com o homem é a força e a nascente da força, segundo a incisiva expressão de São João no prólogo do seu Evangelho: ‘O Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus’. É esta força que transforma interiormente o homem, qual princípio de uma vida nova que não fenece nem passa, mas dura para a vida eterna (cfr Ioh 4, 14)» (Redemptor hominis, n. 18).

  1. O nascimento de que se fala aqui é uma verdadeira geração espiritual que se realiza no Baptismo (cfr Ioh 3,6 ss.). Em vez do texto no plural adoptado, que se refere ao nascimento sobrenatural dos homens, alguns Santos Padres e versões antigas apresentam a leitura no singular: «o que não nasceu do sangue…, mas nasceu de Deus». Neste caso, o texto referir-se-ia à geração eterna do Verbo e ao nascimento virginal de Jesus, por obra do Espírito Santo, das entranhas puríssimas de Maria, isto é, falaria da virgindade de Maria no parto. Ainda que a segunda leitura seja muito sugestiva, contudo a documentação (manuscritos gregos, versões an­tigas, referências dos escritores eclesiásticos, etc.) mostra que o texto no plural foi o mais comum, impondo-se desde o século IV. Além disso, nos escritos de São João diz-se com frequência que os crentes nasceram de Deus (cfr Ioh 3, 3-6; 1Ioh 2, 29; 3, 9; 4, 7; 5, 1.4.18).

O contraste entre o nascimento natural dos homens (que é pelo sangue e pelo querer humano) e o sobrenatural (que vem de Deus) faz ver que os que creem em Jesus Cristo são constituídos filhos de Deus não só enquanto criaturas, mas sobretudo pelo dom gratuito da fé e da graça.

  1. Este é um texto central acerca do mistério de Cristo. Nele se exprime de maneira concentrada a realidade insondável da Encarnação do Filho de Deus. «Ao chegar a pleni­tude dos tempos, enviou Deus o Seu Filho, nascido de mulher» (Gal 4, 4).

A palavra «carne» designa o homem na sua totalidade (cfr Ioh 3, 6; 17, 2; Gen 6, 3; Ps 56, 5); de modo que a frase «e o Verbo fez-Se carne» é igual a «e o Verbo fez-Se homem». Precisamente o termo teológico «Encarnação» surgiu sobre­tudo a partir deste texto. O substantivo carne tem uma poderosa força expressiva perante aquelas heresias que negam a verdadeira natureza humana de Cristo. Por outro lado, «carne» acentua a condição passível e mortal do Salvador, que habitou entre nós tomando a nossa natureza, e evoca o chamado «Canto da consolação» (Is 40, 1-11), onde se contrapõe a caducidade da carne à perenidade do Verbo de Deus: «Toda a carne é erva / e todo o seu esplendor como flor do campo /… a erva seca, a flor murcha, / mas a palavra do nosso Deus / permanece eternamente» (Is 40,7-8). Isto não significa que a assunção da Humanidade pelo Verbo seja precária e provisória.

«E habitou entre nós»: O verbo grego que emprega São João correspondente a «habitou» significa etimologicamente «fixar a tenda de campanha» e, daí, habitar num lugar. O leitor atento da Escritura recorda espontaneamente o tabernáculo dos tempos da saída do Egipto, em que Yahwéh mostrava a Sua presença no meio do povo de Israel mediante certos sinais da Sua glória, como a nuvem pousada sobre a tenda (cfr, p. ex., Ex 25, 8; 40, 34-35). Em muitíssimos passos do Antigo Testamento anuncia-se que Deus «habitará no meio do povo» (cfr, p. ex., ler 7, 3; Ez 43, 9; Eccli 24, 8). Aos sinais da presença de Deus, primeiro na Tenda do Santuário peregrinante no deserto e depois no Templo de Jerusalém, segue-se a prodigiosa presença de Deus entre nós: Jesus, perfeito Deus e perfeito homem, em Quem se cumpre a antiga promessa mais além do que os homens podiam esperar. Também a promessa feita por meio de Isaías acerca do «Emanuel» ou «Deus-connosco» (Is 7, 14; cfr Mt 1, 23) se cumpre plenamente neste habitar do Filho de Deus Encar­nado entre os homens. Por isso, ao ler com religiosa admi­ração as palavras do Evangelho «e habitou entre nós », ou, ao rezar o Angelus, é boa ocasião para fazer um acto de fé profundo e agradecido, e de adorar a Humanidade Santís­sima do Senhor.

«Ao recordar que ‘o Verbo Se fez carne’, isto é, que o Filho de Deus Se fez homem, devemos tomar consciência do grande que se torna todo o homem através deste mistério; isto é, através da Encarnação do Filho de Deus! Cristo, efectivamente, foi concebido no seio de Maria e fez-Se homem para revelar o amor eterno do Criador e Pai, assim como para manifestar a dignidade de cada um de nós» (João Paulo II, Alocução na recitação do Angelus, Santuário de Jasna Gora, 5-VI-1979).

Ainda que o aniquilamento do Verbo ao tomar a natureza humana ocultasse em certo modo a Sua natureza divina, de que nunca Se despojou, todavia os Apóstolos viram a glória da Sua divindade através da Sua Santíssima Humanidade, pois manifestou-se na Transfiguração (Lc 9, 32-35), nos mila­gres (Ioh 2, 11; 11, 40) e especialmente na Ressurreição (cfr Ioh 3, 11; 1Ioh 1, 1). A glória de Deus, que resplandecia no antigo Santuário do deserto ou no Templo de Jerusalém, não eram senão uma antecipação imperfeita da realidade da glória divina manifestada através da Santíssima Humani­dade do Unigénito do Pai. O apóstolo São João fala com sole­nidade na primeira pessoa do plural: «vimos a Sua glória», pois conta-se entre as testemunhas que presenciaram a vida de Cristo e, em particular, a Sua Transfiguração e a glória da Sua Ressurreição.

A palavra «Unigénito» exprime adequadamente a geração eterna e única do Verbo pelo Pai. Os três primeiros Evange­lhos tinham sublinhado o nascimento temporal de Cristo; pelo contrário, São João completa a visão pondo em relevo a geração eterna.

Os termos «graça e verdade» são sinônimos de «bondade e fidelidade», dois atributos que no Antigo Testamento se aplicam constantemente a Yahwéh (cfr, p. ex., Ex 34, 6; Ps 117; Ps 136; Os 2, 16-22). Assim, a graça é a manifestação do amor de Deus pelos homens, da Sua bondade, da Sua mise­ricórdia, da Sua piedade. A verdade implica a permanência, a lealdade, a constância, a fidelidade. Jesus, que é o Verbo de Deus feito homem, isto é, o próprio Deus, é por isso «o Unigénito do Pai cheio de graça e de verdade»; é «o pontífice misericordioso e fiel» (Heb 2, 17). Estas duas qualidades, o ser bom e fiel, são como o compêndio e a síntese da grandeza de Cristo. E são também, de forma correlativa, ainda que em grau infinitamente menor, as qualidades primordiais de todo o cristão, como expressamente o disse o Senhor quando louvou o «servo bom e fiel» (Mt 25, 21).

Como explica o Crisóstomo: «O evangelista, depois de ter dito que aqueles que O receberam nasceram de Deus e são filhos de Deus, indica a causa dessa honra inefável: que o Verbo Se fez carne, e o Senhor tomou a forma de servo. Porque sendo verdadeiro Filho de Deus, fez-Se Filho do Homem, para tornar os homens filhos de Deus» (Hom. sobre S. João, 2,1).

O profundo mistério de Cristo foi expressado pelo Magis­tério da Igreja mediante uma definição solene, no ano 451, no célebre texto do Concilio Ecumênico de Calcedónia: «Se­guindo, pois, os Santos Padres, todos a uma só voz ensinamos que se deve confessar um só e o próprio Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na divindade e perfeito na humanidade, Deus verdadeiramente, e verdadeiramente homem, de alma racional e corpo, consubstancial com o Pai quanto à divin­dade, e consubstancial connosco quanto à humanidade — semelhante em tudo a nós, menos no pecado (Heb 4, 15) —; gerado do Pai antes dos séculos quanto à divindade, e nos últimos dias, por nós e pela nossa salvação, gerado de Maria Virgem, Mãe de Deus, quanto à humanidade» (Dz-Sch, n. 301).

  1. Mais adiante (Ioh 1, 19-36) dá-se a conhecer no Evangelho a missão de João Baptista como testemunha do messianismo e da divindade de Jesus, que aqui se resume de modo muito concentrado. Segundo os planos de Deus, assim como os Apóstolos darão testemunho de Jesus depois da Ressurreição, o Baptista será a testemunha escolhida para anunciar Cristo no momento de iniciar o ministério público (cfr a nota a Ioh 1, 6-8).
  2. «Graça por graça»: Pode entender-se, com São João Crisóstomo e outros Santos Padres, como a substituição da economia salvífica do Antigo Testamento, pela nova economia da graça trazida por Cristo. Também pode indicar uma superabundância de dons outorgados por Jesus: a umas graças acrescentam-se outras, e todas brotam da fonte inesgotável que é Cristo, cuja plenitude de graça nunca acaba. «Ele não tem o dom recebido por participação, mas é a própria fonte, a própria raiz de todos os bens: a própria Vida, a própria Luz, a própria Verdade. E não retém em Si mesmo as riquezas dos Seus bens, mas entrega-os a todos os outros; e tendo-os dispensado permanece cheio; não diminui em nada por tê-los distribuído a outros, mas enchendo e fazendo participar a todos destes bens, permanece na mesma perfeição» (Hom. sobre S. João, 14,1).
  3. Aparece aqui, pela primeira vez no Evangelho de São João, o nome de Jesus Cristo, identificado com o Verbo de que nos tem vindo a falar.

Enquanto a Lei dada por Moisés se limitava a indicar o caminho que o homem devia seguir (cfr Rom 8, 7-10), a Graça trazida por Jesus Cristo tem o poder de salvar aqueles que a recebem (cfr Rom 7, 25). «O pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais sob a Lei mas sob a graça» (Rom 6, 14). Pela «graça tornámo-nos agradáveis a Deus não já somente como servos, mas também como filhos e amigos» (Hom. sobre S. João, 14, 2).

Sobre «a graça e a verdade» pode ver-se a nota a 1,14.

  1. «A Deus ninguém jamais O viu»: Todas as visões que os homens tiveram de Deus neste mundo foram indirectas, já que apenas contemplaram a glória divina, isto é, o resplendor da Sua grandeza: por exemplo, Moisés viu a sarça ardente (Ex 3, 6); Elias sentiu a brisa no monte Horeb (l Reg 19, 11-13); Isaías contemplou o esplendor da Sua majestade (Is 6, 1-3). Mas, ao chegar a plenitude dos tempos, essa manifestação de Deus torna-se mais próxima e quase directa, já que Jesus Cristo é a imagem visível do Deus invisível (cfr Col 1, 15); é a revelação máxima de Deus neste Mim viu o Pai» (Ioh 14, 9). «Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a reve­lação» (Dei Verbum, n. 2).

Nenhuma Revelação mais perfeita pode fazer Deus de Si mesmo que a Encarnação do Seu Verbo Eterno. Por isso escreve admiravelmente São João da Cruz: «Em dar-nos, como nos deu, Seu Filho, que é a Sua única Palavra, que não tem outra, tudo nos disse juntamente e de uma vez nesta única Palavra, e não tem mais que falar» (Subida ao Monte Carmelo, liv. 2, cap. 22).

«Um Deus, Filho único»: Alguns manuscritos gregos e versões trazem a leitura «o Filho Unigénito», ou também «o Unigénito». A primeira leitura é preferível por estar melhor apoiada nos códices. Além disso, ainda que o sentido não mude substancialmente, o texto adoptado tem um conteúdo mais rico, pois manifesta de novo explicitamente a divin­dade de Cristo.

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